Reformas da regulação dos riscos nos arranjos de pagamento após uma década de testes

Hiago de Almeida Castilhejo

José Diego Rodrigues Silva

Pedro Duarte Pinho, FAS Advogados in cooperation with CMS

 

Em setembro o Banco Central do Brasil (BCB) deu um novo passo no processo de aprimoramento do gerenciamento de riscos incorridos no âmbito dos arranjos de pagamento integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), tema que já vinha sido discutido há alguns meses entre o regulador, agentes privados e associações do mercado.

 

Trata-se da abertura da Consulta Pública n° 104 para discutir proposta de ato normativo voltado para reforçar a solvência das obrigações de pagamento no fluxo entre participantes de arranjos de pagamento, estabelecer aprimoramentos na estrutura de gerenciamento de riscos desses arranjos e definir regras para chargeback e resolução de disputas entre participantes.

 

Segundo o BCB, o objetivo dessas mudanças é garantir a solidez, a eficiência e o funcionamento regular do SPB. A discussão ocorre em um momento oportuno, pois permite que sejam absorvidas algumas lições dos mais de 10 anos de disputas judiciais envolvendo situações de insolvência de participantes dos arranjos e a distribuição da responsabilidade por chargebacks desde a promulgação da Lei n° 12.865/2013, que disciplina os meios de pagamento.

 

Um exemplo relevante é o caso da Bela Pagamentos, subcredenciadora gaúcha que entrou em falência e deixou de repassar valores de transações a recebedores finais. O caso teve um desenvolvimento recente com o julgamento de um Recurso Especial envolvendo o tema em maio de 2024 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu que a credenciadora vinculada à Bela (Stone) não poderia ser responsabilizada pelos valores não repassados pela subcredenciadora aos usuários na ponta. O tribunal fundamentou a sua decisão apontando que não há relação consumerista com o lojista, uma vez que os contratos são interempresariais e a solidariedade não é automaticamente reconhecida nesse contexto, isentando a credenciadora do pagamento dos débitos inadimplidos.

 

Esse caso é importante para o contexto atual porque foi uma das poucas ocasiões em que os mecanismos de gestão de riscos dos arranjos foram testados fora da esfera rotineira (e um tanto mais previsível) das bandeiras e do regulador. O entendimento final replicou o modelo de riscos hoje estruturado pelas bandeiras – que garantem apenas os débitos de emissores e credenciadores – e mostrou que de fato a estrutura atual de riscos ao lojista possui complexidades que variam conforme alguns fatores, como, por exemplo, os participantes envolvidos.

 

A minuta proposta pelo BCB evidencia que essa é uma preocupação presente. Chama a atenção a inserção de dispositivos mais robustos em seu texto exigindo a garantia do pagamento integral de todas as transações mesmo em situações extremas, a organização dos processos de constituição e execução de garantias, a criação de mecanismos de mutualização de riscos (que, diga-se de passagem, possuem todo um universo de complexidades já bem conhecido pelo sistema financeiro), entre outros.

 

Vale notar que a minuta propõe que credenciadoras e subcredenciadoras recebam um tratamento especial em relação a certos aspectos, portanto é de se esperar que, além dos instituidores dos arranjos em si, esses players sejam os mais impactados em suas relações contratuais, rotinas de onboarding e operação nos arranjos. Nesse sentido, já chamou a atenção do mercado a proposta de fim da dispensa de participação de subcredenciadores na liquidação centralizada por critérios de volumetria, programada para passar por um encerramento gradual até 2027.

 

Outro aspecto importante que se pode identificar com a experiência dessa matéria no Judiciário é que ainda não há clareza sobre como está sendo efetivamente distribuído o risco de chargeback no Brasil. Hoje há uma grande diversidade de entendimentos entre os magistrados – enquanto muitos entendem que os riscos podem ser repassados aos lojistas, outros entendem que tal prática é abusiva mesmo quando não se aplica o CDC. É comum, inclusive, identificar posições diretamente contrapostas entre si dentro de um mesmo tribunal, como no caso do Estado de São Paulo. Além disso, não há uma organização sobre a forma como a matéria é levada aos tribunais, portanto a seleção dos argumentos jurídicos apreciados e dos agentes responsáveis acaba dependendo essencialmente das estratégias das partes em cada caso.

 

Nesse contexto, o BCB também incluiu na proposta um dever dos instituidores de prever de forma mais clara a distribuição de responsabilidades dos participantes e dele próprio nas regras para chargeback e resolução de disputas, incluindo a gestão e a mitigação dos riscos envolvidos nesse processo e os aspectos mínimos operacionais em todas as modalidades.

 

Essas e outras questões motivaram uma série de propostas de mudanças que serão discutidas na consulta pública até o fim de outubro. Acreditamos que é importante que o contexto de aplicação prática da regulação na última década seja levado em consideração pelos participantes para que a regulação se mantenha aderente ao “mundo real” do direito e os agentes possam prever seus riscos com maior precisão.

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