Renato Chaves Ferreira,
Professor Ms. De Direito Constitucional e Direito Administrativo na Universidade Federal de Juiz de Fora
Tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei de Conversão (PLV) da Medida Provisória 1040 que, entre outros temas, visa à criação de um novo regime jurídico às traduções e interpretações públicas no Brasil (Capítulo VII). Já tendo tramitado e sido aprovado na Câmara dos Deputados, o PLV, ora sob apreciação do Senado Federal, traz no seu bojo dispositivo claramente incompatível com normas contidas na Constituição Federal (CF). Nos referimos ao art. 22 do PLV.
O citado art. 22 trata no caput e seus incisos dos requisitos para o exercício da profissão de tradutor e interprete público (TIP), entre os quais está “ser aprovado em concurso para aferição de aptidão;” (inciso IV). Entretanto, o parágrafo único do mesmo artigo prevê que a exigência de concurso público poderá ser dispensada àqueles que obtiverem grau de excelência em exames nacionais e internacionais de proficiência, nos termos do regulamento do Ministério da Economia.
A dispensa é fruto da Emenda Aditiva 222 ao PLV, acolhida no âmbito da Câmara. Lê-se na sua justificativa: “Tal medida permite uma maior flexibilidade da oferta do profissional de Tradução e Interpretação, ao passo em que garante a manutenção de requisitos mínimos de qualidade, a serem definidos pelo Ministério da Economia.”
Vê-se, pois, que a exigência da realização do concurso público, na prática, seria faculdade discricionária do Poder Executivo, exercida nos termos de regulamento.
Em paralelo, o PLV dispõe (art. 26), ainda que, com ressalvas, serem privativas do TIP, dentre outras, as atividades de tradução de qualquer documento a ser apresentado em outro idioma perante pessoa jurídica de direito público. Também consta do PLV (art. 27, § 1º) que só terá fé pública a tradução realizada por TIP.
O regime jurídico de atribuição da função de TIP que o PLV pretende estabelecer representa séria ameaça aos Princípios Constitucionais da Eficiência da Administração Pública, o Princípio da Segurança Jurídica, sendo incompatível com eles.
Pessina, citado por Nélson Hungria, diz sobre o conceito de fé pública:
“ O conjunto de normas em torno à certeza legal constitui a fé pública, isto é, não a mera confiança de indivíduo para indivíduo, mas fé sancionada pelo Estado, a força probante por este atribuída a alguns objetos, ou símbolos ou formas exteriores.”[1]
Dois elementos deste conceito importam aqui: (I) fé pública é certeza legal garantida por normas jurídicas em caráter objetivo, não como mera confiança subjetiva existente entre indivíduos; (II) garantir a certeza legal objetiva representada pela fé pública é atividade estatal, verdadeiro serviço público.
O elemento (II) leva à conclusão de que o PLV, ao asseverar que nenhuma tradução terá fé pública se não for realizada por TIP (art. 27, § 1º), garante a este a condição de Agente Público, delegatário de serviço público. É certo que nem toda a delegação de serviço público pressupõe a realização de concurso público. Porém, a CF, ao dispor que a delegação do serviço notarial e de registro se faz por este meio (art. 236), revela a decisão do Constituinte de 1988 de estabelecer o concurso público como a via para a obter-se a delegação de serviço público cujo cerne resida na conferência de fé pública. É justamente este o caso da tradução pública: seu cerne é dar certeza jurídica à tradução para o português de documentos redigidos em língua estrangeira. O imperativo do concurso de provas e títulos se impõe, em os ambos os casos, como forma de garantia do Princípio da Segurança Jurídica. Além disso, dado o Princípio da Isonomia, é inadmissível sua dispensa eventual em favor de outro procedimento de atribuição de delegação, por ato do Poder Executivo, como faz o PLV.
O elemento (I) reforça nossa tese com outro fundamento. Antes, vale lembrar que fé pública não tem caráter subjetivo, entendida como confiança entre indivíduos. Por isso, o requisito previsto no inciso V[2] do art. 22 do PLV, embora louvável, não diz respeito a ela. O caráter de certeza legal objetiva da fé pública diz com a exatidão, a precisão e a correção objetiva no ato de dar fé. Na tradução pública, isto significa que o TIP há de possuir as competências técnicas específicas, além do domínio regular de um idioma estrangeiro, que garantam a exatidão e a correção objetiva da tradução para o português de documentos produzido em língua estrangeira. A Profa. Márcia Pietroluongo, da UFRJ, cita como necessária para a tradução, dentre outras, a competência linguístico-contrastiva, fundada na diferenciação das duas línguas, controlando as interferências[3]. A dispensa do concurso para TIP, aos que “obtiverem grau de excelência em exames nacionais e internacionais de proficiência”, ofende também o Princípio da Eficiência Administrativa (art. 37, caput, da CF.) É que tais exames atestam, no melhor dos cenários, o domínio do uso de uma língua estrangeira, não a competência de tradução. Há aqui um claro descasamento entre as aptidões necessárias para o eficiente desenvolvimento do serviço público de tradução pública, mais complexas, e as aptidões aferidas nos exames de proficiência, menos complexas. Ainda que exames de proficiência contemplassem competências próximas às necessárias para a tradução comum, há que se considerar que a tradução pública demanda conhecimentos básicos de caráter jurídico, afinal, estamos aqui no campo da certeza legal objetiva. Isso, só o concurso público de provas e títulos pode garantir.
[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Vol. IX. 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 185
[2]Art. 22 São requisitos para o exercício da profissão de tradutor e interprete público:
V – não estar enquadrado nas hipóteses de inelegibilidade previstas na alínea e do inciso I do caput do
art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990;
[3] ATENDIMENTO À CONSULTA DA ASSOCIAÇÃO DE TRADUTORES PÚBLICOS DO RIO DE JANEIRO - ATP- Rio, em 05/07/2021.