Luca Giannotti[1]
Na última semana, os enunciados da IX Jornada de Direito Civil finalmente foram publicados. Dentre eles, encontramos dois sobre o contrato de seguro. Ambos tratam da incidência da boa-fé objetiva na regulação de sinistro, assunto carente de um regime jurídico à altura de sua relevância prática:
Enunciado 656: Do princípio da boa-fé objetiva, resulta o direito do segurado, ou do beneficiário, de acesso aos relatórios e laudos técnicos produzidos na regulação do sinistro.
Enunciado 657: Diante do princípio da boa-fé objetiva, o regulador do sinistro tem o dever de probidade, imparcialidade e celeridade, o que significa que deve atuar com correção no cumprimento de suas atividades.
A regulação de sinistro[2] é, entre outras coisas,uma fase específica do contrato de seguro que se inicia quando o segurado avisa um possível sinistro à seguradora. Nela, o regulador de sinistro, profissional indicado pela companhia de seguro,auxilia o segurado na contenção do possível sinistro, apura as causas e as circunstâncias do fato avisado à seguradora, enquadra o que investigou nas cláusulas da apólice e quantifica os prejuízos indenizáveis do segurado. O desfecho dessa etapa do seguro se dá quando a seguradora, após receber o relatórioproduzido pelo regulador e seus documentos técnicos auxiliares, informa o segurado se o evento é garantido (ou “coberto”) pelo contrato de segurado, e, caso a resposta seja positiva, o montante da indenização devida.
Nesse momento, a seguradora adimple seu dever de regular, dever secundário, ou acessório,à obrigação de garantir o interesse legítimo do segurado contra riscos predeterminados. A razão pela qual a regulação de sinistro existe é tão multifacetada quanto as tarefas desempenhadas pelo regulador. Ela serve, principalmente, para garantir que o desembolso da seguradora é feito nos termos e limites da apólice do seguro e do Código Civil, protegendo, em última instância, o interesse de todos os outros segurados contra a degradação da garantia e prêmios mais elevados. Todavia, ela certamente não se limita a isso. O regulador deve, por exemplo, auxiliar o segurado a conter o sinistro e salvar o interesse segurado contra danos mais severos, já que detém a experiência necessária parar gerir a crise causada pelo sinistro, e avisar a seguradora sobre as perdas esperadas do segurado, para que provisões adequadas possam ser constituídas.
Ao longo da regulação, vive-se uma intensa contraposição de interesses entre segurador e segurado. Este amarga sozinho os efeitos do evento avisado como sinistro enquanto espera o auxílio da seguradora. Aquela, por sua vez, deseja indenizar o segurado com os devidos cuidados e nos limites do contrato. Nesse contexto,surge a figura do regulador de sinistro – originalmente ocupada pelo ressegurador monopolista brasileiro[3]–, cuja função é atuar como um elo imparcial entre partes que devem cooperar para levar ao fim a apuração.
Desde que o Instituto de Resseguros do Brasil deixou de ser responsável pela condução das regulações de sinistro em 2007, cedendo lugar às próprias seguradoras, não houve qualquer preocupação em criar regras adequadas para esse novo estado de coisas. Não se assegurou em texto legal expresso, por exemplo, o dever de imparcialidade do regulador, que antes não tinha vínculo direto com a seguradora, ou o direito do segurado a acessar os documentos produzidos pelo perito, já que a investigação também é feita em seu interesse.[4]
Mais uma vez se verifica que, na ausência de um regramento adequado, a boa-fé objetiva é um instrumento valioso para ponderar e harmonizar os interesses envolvidos no caso concreto.[5]Na da regulação de sinistro, a situação específica do regulador lhe atribui diversos deveres laterais, como os de informação, lealdade e proteção para com ambas as partes do contato de seguro.
Os dois enunciadostrazem concretizações desses deveres, que, no cotidiano, são descumpridos reiteradamente. Poucos segurados, por exemplo, têm acesso ao relatório de regulação de sinistro quando recebem a decisão da seguradora sobre a indenização. Para as companhias de seguro, esses documentosseriam internos, produzidos por seus funcionárioscom o único propósito de auxiliar o analista de sinistros (também subordinado à seguradora) a decidir sobre a incidência do seguro ao caso. Nada, assim, que diria a respeito ao segurado.
No primeiro enunciado, o direito do segurado a consultar relatórios e laudos produzidos na regulação de sinistro decorre de um dever de informar atribuídoao regulador de sinistro e à seguradora que o escolheu. O fundamento desse dever está na otimização do cumprimento do dever de regular: tendo a seguradora o dever de informar o segurado da existência e extensão do crédito indenitário, é natural que o segurado tenha interesse em verificar o respaldo técnico desenvolvido para fundamentar a posição apresentada.
No segundo enunciado, declara-se que o comportamento do regulador de sinistro deve ser pautado pela boa-fé, e que dessa imposição surgem, para o perito, ao menos os deveres de probidade, imparcialidade e celeridade. Embora não estejam diretamente ligados à informação devida, esses deveres também se prestam a maximizar a utilidade do cumprimento do dever de regular. De nada serve ao segurado uma apuração que se arrasta por tempo excessivo, seja por extrema minúcia, o que violaria o dever de celeridade, seja por contar com um regulador desinteressado, contrariando o dever de probidade. A imparcialidade, por fim, é pressuposto indispensável para que haja confiança na informação transmitida pelos relatórios e laudos produzidos pela investigação técnica.
Os enunciados são, portanto, extremamente oportunos, consolidando a posição já pacificada na doutrina brasileira.[6]No entanto, não se deve inferir desses textos que os deveres laterais do regulador se limitam aos positivados. O dever de cooperação, por exemplo, que impõe ao regulador uma interação constante com o segurado e seguradora a cada etapa da investigação, não foi mencionado, mas deve ser derivado do art. 422 do Código Civil, e os deveres de proteção são impostos ao regulador de sinistro com especial intensidade, pelo contexto em que é chamado a atuar.
[1]Advogado. Doutorando em Direito Civil na Universidade de São Paulo (USP). Membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC).
[2] Existem poucos trabalhos no Brasil sobre a regulação de sinistro. Para uma visão geral sobre o instituto, bem como indicações bibliográficas, cf. TZIRULNIK, Ernesto; GIANNOTTI, Luca. A regulação de sinistro como fase, dever e prestação no seguro. In: Anais do VIII fórum de direito do seguro “José Sollero Filho”. No prelo.
[3]Art. 44. Compete ao IRB: I - Na qualidade de órgão regulador de cosseguro, resseguro e retrocessão: g) proceder à liquidação de sinistros, de conformidade com os critérios traçados pelas normas de cada ramo de seguro.
[4]A regulação, por esse motivo, é extensamente regrada no projeto de lei do contrato de seguro, especialmente nos artigos 77 a 92 do PLC 29/2017.
[5] “Em sua formulação mais geral, o princípio da boa-fé objetiva comanda a ponderação responsável dos interesses de todos vinculados à relação jurídica.A tarefa é atribuir, também no caso particular, a cada interesse sua prioridade legítima, que não foi protegida adequadamente por normas específicas, ou, em caso de colisão entre interesses igualmente reconhecidos, definir qual deve prevalecer na ausência de uma regra de conflito específica.”KRÜGER, Wolfgang (org.). Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch.Vol. II. 5. ed. München: C. H. Beck, 2007, §242, n. 46, p. 128 (Röth).
[6] Cf., por todos, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 378, que agrupa os deveres do regulador de sinistro em três grupos: (i) deveres de isenção, firmando uma posição de equidistância entre as partes, (ii) deveres de veracidade, a exigir que o regulador chegue às conclusões sobre cobertura de forma fundamentada, técnica e transparente e (iii) deveres de informação, sendo o regulador obrigado a questionar e prestar informações tanto ao segurado quanto à seguradora ao longo da regulação de sinistro.