BREVE HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: desde os mitos até Vidocq

Conteúdo do Artigo: 

por BRENO EDUARDO CAMPOS ALVES[1]

 

  1. INTRODUÇÃO

 

             A investigação criminal é árvore com raízes em diversas disciplinas científicas, sendo desenvolvida ao longo da história até ter seus contornos delineados, seus princípios fundamentados, metodologia esculpida e objeto traçado.

             Um dos maiores estudiosos do Brasil na temática, Prof. Célio Jacinto dos Santos aduz com clareza que “a investigação criminal é uma disciplina científica autônoma que emprega saberes e técnicas para descoberta e definição de delitos, com estrita observância dos limites e formas jurídicas aplicáveis ao processo investigativo”.[2]

             Neste rumo, iremos traçar uma rota de verificação da história da investigação criminal, partindo da primeira forma de transmissão de conhecimento e tradição por meio de mitos, indo para a idade antiga e, após, analisaremos a idade média e moderna, concluindo até a figura expoente de Eugéne-François Vidocq.

 

1.2 – A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA MITOLOGIA

 

             Desde tempos remotos a idéia de se reconstruir um fato para enquadrá-lo ao conceito de crime ou não é tarefa perseguida pelas comunidades, famílias e associações de homens na vida social. De comunidades menos complexas às mais evoluídas em diversidades de trabalhos e manufaturas, a perseguição de um autor de crime e a conseqüente aplicação de sua pena tem sido uma das relações humanas sociais de maior variedade de concepções, justificações e aplicações.

             Embora neste ponto inicial, a investigação criminal mais se aproxima a uma decisão de culpa criminal, não deixa de haver um contributo à noção de investigação criminal moderna, sendo aquela, em algum grau, a própria finalidade desta.

             Na mitologia grega já se apresentava o Tártaro como sendo a personificação do mundo inferior, o mundo dos mortos, para onde todos os inimigos do Olimpo eram enviados para serem castigados por seus crimes, como os Titãs, em exemplo, o foram punidos por Zeus ao serem para lá enviados. Em Hesíodo consta “Aí, os Deuses Titãs sob a treva nevoenta estão ocultos por desígnios de Zeus agrega-nuvens, região bolorenta nos confins da terra prodigiosa”[3].

FIGURA 1 – Quadro “Queda dos Titãs” de Cornelis van Haarlem - Museu Nacional de Arte da Dinamarca

         

O Tártaro é apontado como sendo o local onde o crime encontrava seu castigo.

 

Um bom exemplo é o de Sísifo, ladrão e assassino, condenado a eternamente empurrar uma rocha ladeira acima - apenas para vê-la novamente descer com o próprio peso. Também ali se encontrava Íxion, o primeiro homem a derramar o sangue de um parente. Fez com que o seu sogro caísse num fosso cheio de carvões em brasa para assim evitar o pagamento do dote pela esposa. Seu justo castigo foi o de passar toda a eternidade girando uma roda em chamas. Tântalo, que desfrutava da confiança dos deuses, conversando e ceando com eles, dividiu a comida e os segredos divinos aos seus amigos. Sua punição pela perfídia consistia em ser mergulhado até o pescoço em água fria, que desaparecia sempre que tentava bebê-la para aplacar a enorme sede, além de ver frutificando logo acima de sua cabeça deliciosas uvas que, quando tentava colhê-las, subiam para fora de seu alcance.[4]

 

 

             As erínias (Alecto, Megera e Tisífone) eram, no contexto da mitologia grega, as personificações da vingança, forças primitivas da natureza que atuavam como vingadoras do crime, que puniam os mortais, seguiam os infratores sem parar, não os deixavam dormir em paz, ameaçando-os com fachos acesos. Assim, temos em sentido conotativo, a persecução para punição daqueles humanos que cometeram crimes.

 

 

FIGURA 2 – Quadro “O REMORSO DE ORESTES” – 1862 - Óleo sobre tela de William-Adolphe Bouguereau (1825/1905) Museu Chrysler de Arte

 

 

             Neste ímpeto, ainda temos na mitologia grega o crime conhecido como “o roubo do fogo”, no qual Prometeu, proibido por Zeus de ensinar o segredo do fogo aos mortais, subiu até o Olimpo e trouxe de lá uma tocha em chamas para os homens, os quais poderiam, a partir de então, moldar utensílios, forjar metais, etc. Entretanto, Zeus, em um ato investigativo, verificou-se em sua diligência de observação, reflexos luminosos na terra, descobrindo-se então o crime de Prometeu, “o roubo do fogo”. Zeus condenou a humanidade enviando-lhe Pandora, uma mulher, com uma caixa contendo todas as maldades e desgraças. Ainda, Prometeu foi condenado a ser preso e ter seu fígado comido todas as manhãs por uma água faminta.

 

             Na mitologia romana também há a menção do Tártaro como o local de envio dos pecadores, sendo gigantesco, rodeado pelo rio de fogo e cercado com muralha para impedir a fuga dos pecadores. Virgílio, poeta romano, descreve que “a vara empunha; com esta ele as almas evoca desde o Orco, pálidas sombras, ou as joga mais baixo que o Tártaro triste, dá sono e o tira, e abre os olhos que a Morte da luz já privara”.[5]

 

 

No seu interior havia um castelo com amplas muralhas e um alto torreão de ferro. Tisífone, a Fúria que representava a Vingança, é a vigia que jamais dorme no alto deste torreão, chicoteando os condenados a ali passar a eternidade.

No interior deste castelo há um poço que desce até as profundezas da terra, no dobro da distância que há entre a terra dos mortais e o Olimpo. No fundo deste poço estão os Titãs, os Aloídas (gigantes gêmeos) e muitos outros criminosos.

No próprio Tártaro estão milhares de outros criminosos, recebendo castigos semelhantes aos dos mitos gregos.[6]

 

 

             Na mitologia nórdica temos a lenda do roubo do hidromel, no qual Fialar e Galar, dois anões, mataram Kvasir e criaram do sangue deste a substância hidromel. Odin decidiu-se ir procurar pela bebida e seguiu as pistas dos anões e, após havê-los encontrado, conseguiu arrancar deles a história dos seus crimes[7].

 

             Assim, em uma investigação de seguimento de pistas, o deus Odin, chegou até os suspeitos e, empregando a inquirição – técnicas de interrogatório -, arrancou-lhes a história de seus crimes.

 

 

FIGURA 3 - A Caçada selvagem: Asgårdsreien (1872) por Peter Nicolai Arbo

 

 

          No texto bíblico encontramos a menção de um processo investigativo indutivo, sendo que Deus, ao impor a lei penal de não comer o fruto da árvore proibida, notou, em diligência de observação, que Adão e Eva sentiam vergonha de seus estados nus, concluindo, com base neste raciocínio indutivo, Deus, que eles haviam comido do fruto proibido, vez que este lhes daria tal conhecimento.

 

E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.

Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.

E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim.

E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?

E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.

E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?

Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi. (Gênesis 3:6-12)

 

 

          Os mitos são formas de expressão que as gerações passavam e explicavam o mundo umas às outras, sendo fonte rica de acomodação e fixação de modelos de conduta de atividades humanas. Assim, não diferente poderia ser a presença de ações investigativas nos mitos dos povos antigos, seguindo a lógica de Jean-Jacques Russeau[8], na qual o homem social se estabelece mediante um contrato social as bases de convivência mútua, temos que, através dos mitos, detinham o substrato para estabelecer esta primeira base, criando a ética dos grupos de homens que passaram a viver conjuntamente.

 

 

1.2 – A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA ANTIGUIDADE

 

          O Código de Hamurabi é composto por 282 normas talhadas em uma rocha de diorito, tratando-se do conjunto normativo mais antigo que utilizamos para referenciar legislações da antiguidade, acreditando-se que tenha sido escrito pelo rei Hamurábi, no século XVIII a.C., sendo encontrado na região da Mesopotâmia (hoje Irã) no início do século XX.

 

FIGURA 04: Pedra contendo o Código de Hammurabi - Exposição no Museu do Louvre - Páris

         

Logo em seu primeiro artigo, temos uma noção de investigação para comprovação de um fato alegado, vejamos:

 

§ 1. Se um awllum acusou um (outro) awllum e lançou sobre ele (suspeita de) morte mas não pôde comprovar: o seu acusador será morto.[9]

 

             Nesta época, temos uma fase de produção privada de investigação, sendo que o particular deveria conseguir angariar as informações para apresentação ao juiz, o qual avaliaria e julgaria o caso concreto. Temos, neste tempo, uma forte presença do elemento testemunhal.

 

 

§ 9 Se um awllum, de quem se extraviou um objeto, encontrou seu objeto perdido nas mãos de um (outro) awllum e o awllum em cujas mãos foi encontrado o objeto perdido declarou: «um vendedor mo vendeu, eu o comprei diante de testemunhas»; (se) o dono do objeto perdido por sua vez declarou: «eu trarei testemunhas que conhecem o meu objeto perdido»; (se) o comprador trouxe o vendedor que lhe vendeu ,(o objeto) e as testemunhas diante das quais comprou. e o dono do objeto perdido trouxe ás testemunhas que conhecem seu objeto perdido: os juizes examinarão as palavras deles; as testemunhas diante das quais a compra foi efetuada e as testemunhas que conhecem o objeto perdido declararão seu conhecimento diante da divindade. (Neste caso) o vendedor é ladrão, ele será morto. O dono do objeto perdido tomará seu objeto perdido e o comprador tomará na casa do vendedor a prata que havia pesado.[10]

 

 

             Na cultura indiana, temos a presença da Arthasastra, um antigo tratado escrito em sânscrito no século IV a.C., no qual encontramos no livro IV, capítulo III, o seguinte título: “O julgamento e a tortura necessária para obter uma confissão”.[11]

         

FIGURA 05: Arthasastra inscrito em madeira

 

          Neste documento, com conteúdo amplo, de esboço jurídico e burocrático, denotamos a presença de procedimentos de investigação com vista a produção de uma confissão, de formas de se buscar o conhecimento de um fato – contextualizando com sua época de elaboração.

 

          No espectro indiano, ainda temos o Código de Manu, também escrito em sânscrito, sendo uma coleção quatro compêndios redigidos entre II a.C. e II d.C. em forma poética e imaginosa. No livro oitavo deste código, temos a menção de meios de prova – demonstrando, mais uma vez, a investigação criminal privada baseada na produção de conteúdo testemunhal. Vejamos:

 

 

Art. 47º Eu foi fazer conhecer, com testemunhas, os credores, e os outros litigantes devem produzir nos processos, assim como a maneira porque essas testemunhas devem declarar a verdade.

Art. 48º Donos de casa, homens tendo filhos varões, habitantes de um mesmo lugar,, pertencendo quer à classe militar, quer à comerciante, quer à servil, sendo chamados pelo autor, são admitidos a prestar testemunho, mas não os primeiros vindo, exceto quando há

necessidade.

Art. 49º Devem-se escolher como testemunhas, para as causas, em todas as classes, homens dignos de confiança, conhecendo todos os seus deveres, isentos de cobiça, e rejeitar aqueles cujo caráter é o oposto a isso.

Art. 50º Não se devem admitir nem aqueles que um interesse pecuniário domina, nem amigos, nem criados, nem inimigos, nem homens cuja má-fé seja conhecida, nem doentes, nem homens culpados de um crime.

Art. 51º Não se pode tomar para testemunha nem o rei, nem um artista de baixa classe, como um cozinheiro, nem um ator, nem um hábil teólogo, nem um estudante, nem um ascético afastado de todas as relações mundanas.

Art. 52º Nem um homem inteiramente dependente, nem um homem mal afamado, nem o que exerce um ofício cruel, nem o que se entrega a ocupações proibidas, nem um velho, nem uma criança, nem um homem só, nem um homem pertencente a uma classe misturada, nem aquele cujos órgãos estão enfraquecidos.

Art. 53º nem um infeliz desanimado pelo pesar, nem um ébrio, nem um louco, nem um sofrendo fome ou sede, nem fatigado em excesso, nem o que está apaixonado de amor, ou em cólera, ou um ladrão.

Art. 54º Mulheres devem prestar testemunho para mulheres; Dvija da mesma classe para Dvijas, Sudras honestos para pessoas da classe servil; homens pertencentes às classes misturadas para os que nasceram nessas classes. Mas, se se trata de um fato acontecido nos aposentos interiores ou em uma floresta, ou de um assassinato, aquele, quem quer que seja, que viu o fato, deve dar testemunho entre as duas partes.

Art. 55º Em tais circunstâncias, na falta de testemunhas convenientes, pode se receber o depoimento de uma mulher, ou de uma criança, de um ancião, de um discípulo,

de um parente, de um escrava ou de um criado.[12]

 

 

          Após o discorrido acima, chegamos, dada a suntuosidade, a um dos momentos históricos de maior impacto na humanidade: a história de Roma.  A história do Direito Romano percorre de 753 a.C a 1453 d.C, ou seja, mais de duas dezenas de séculos.

 

FIGURA 6: Martírio de Santa Inês. Pintura óleo sobre madeira. Museu Nacional do Prado. Madri, Espanha.

 

 

             Temos, neste enredo, a criação das figuras do irenarcas, do curiosi, stationarii ou frumentarii, oficiais romanos encarregados de manutenção da ordem pública, e, assim, serviam de responsáveis pela investigação de crime, conforme aduz MICHEL RASSAT:  

 

Eram eles oficiais com atribuições de polícia, que deviam exercer uma fiscalização e levar ao conhecimento das autoridades superiores aquilo que de errado encontrassem. Os frumentarii andavam à procura de crimes como os soldados atrás dos delinqüentes; os curiosi percorriam incessantemente as províncias, para levar ao conhecimento do imperador os abusos que descobrissem; os stationarri exerciam sem dúvida as mesas funções em posto fixo[13].

 

             No mesmo sentido, COGAN:

 

Em Roma, havia algumas funções ministeriais, como os irenarchas, que tinham a obrigação de zelar pela manutenção da tranquilidade e da paz nas províncias e pela concórdia em seu território, os curiosi, que investigavam o que ocorria nos lugares por onde passavam os stationari, que faziam o mesmo, porém em locais fixos (...)[14].

 

 

             Assim, surgidas no quarto século, com atribuições de polícia investigadora, temos nas figuras, principalmente, dos curiosi e dos stationarii, a gênese de fundamento da polícia investigativa – polícia judiciária. 

 

             O mestre Célio Jacinto dos Santos assim exprime que “curiosi exprime a idéia de investigar, explorar, de se informar, de fazer perguntas e, também, está relacionada à inquisitividade. Deriva do latim curiosus e corresponde àquele que é diligente, cuidadoso, inquiridor, assim como cura significa cuidado”[15].

 

 

1.3 – A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA IDADE MÉDIA

 

             A idade média é uma conceituação temporal histórica que se inicia com a queda do Império Romano do ocidente no ano de 476 e tem o seu fim com tomada de Constantinopla pelo povo turco no ano de 1453, logo, compreende-se um período cerca de mil anos.

             Cleber Masson (2016) aduz que neste período, o direito penal, base da investigação proposta neste trabalho, compreenderia, principalmente o direito penal germânico e o direito penal canônico. Quanto ao primeiro, não havia leis escritas, sendo um costume consuetudinário, uma ordem de paz, marcada, primeiramente pela justiça privada e, depois, por um preço da paz.  Assim, havia um sistema de “composição pecuniária (Vehgeld), que muito bem substituía a vingança privada, no qual predominava a responsabilidade penal objetiva”[16]

 

A porção penal das leis germânicas – leges barbarorum, da época franca, e outras posteriores a essa compilação – tornou-se na sua maior parte, um minucioso tabelamento de taxas penais, variáveis segundo a gravidade das lesões e também a categoria do ofendido, ou a sua idade ou sexo[17].

 

                           Porém, em que pese essa vinculação à um direito penal objetivo, temos pouco avanço quanto ao campo investigativo criminal, existindo, neste contexto, o julgamento das ordálias ou juízos de deus. No mesmo norte, a verdade dos fatos não era perseguida, dando lugar para juramentos, duelos, etc. A título de contraste, crimes de pequeno potencial ofensivo – estes aqueles com penas pequenas – no Brasil, atualmente, não recebem tratamento investigativo à procura de verdade dos fatos em prima face, tendo um desfecho de composição junto ao juizado especial criminal.

                    Por outro lado, quanto ao direito penal canônico, temos, na figura do Papa Inocêncio III, o qual foi chefe da igreja católica de 1198 a 1216, criando, em 1199, pela bula Vergentis in senium, a inquisição dos legados pontifícios, a aparição de um procedimento de investigação inquisitiva. No mote da bula citada, funcionários nomeados pelo papa era enviados para julgar e condenar os hereges onde os bispos não estavam trabalhando a contento.

 

FIGURA 7: Galileu diante do Santo Ofício, pintura do século XIX de Joseph-Niclas Robert-Fleury

 

A Inquisição tem começo no século XII na França para combater o sectarismo religioso, tomando uma amplitude no final da idade média, promovida pela Igreja Católica Romana. KRAMER e SPRENGER no livro ‘O Martelo das Feiticeiras’ aduzem que “(...) todas as bruxas, todas as videntes, todas as necromantes e todos os que praticam qualquer arte divinatória, desde que uma vez tenham abraçado e professado a Santa Fé, devem ser submetidos ao Tribunal da Inquisição (...)”[18].

 

Neste período há uma figura do âmbito da investigação criminal muito presente nos tempos atuais, a denúncia, sendo que, para aqueles que confessassem dentro de um “período de graça” suas próprias heresias, e denunciassem cúmplices, teriam a volta à igreja, gerando, para o acusado (denunciado) o ônus da justificação. Em que pese o dissabor histórico, observa-se uma espécie de delação formal, elemento contemporâneo de investigação criminal de crimes associativos.

 

1.4 – A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NA IDADE MODERNA E CONTEMPORÂNEA

 

             Neste momento histórico, séculos XVIII e XIX, temos o aumento da urbanização, os elementos de territorialidade se alteram, fixam novas raízes, havendo um crescimento da população nos centros urbanos uma nova dinâmica sócio-econômica e do espaço geográfico.

             Por um lado temos a Revolução Industrial que implementou na Europa a utilização do uso de máquinas, alternando o trabalho artesanal pelo trabalho assalariado. Por outro lado, temos a Revolução Francesa, com seu impacto político social, sob o lema da igualdade, liberdade e fraternidade, o qual fez cair a monarquia francesa e se estabelecer uma república.

             Neste novo cenário, temos uma burguesia e um magote de trabalhadores urbanos, gerando novas espécies de delinqüentes, subversivos a esta ordem sócio-econômica que se delineava, gerando uma incapacidade da força armada (Exército) enfrentar a identificação de autores de crimes e prover elementos para a condenação destes.

             Pois bem, é neste espectro de história que surge Eugéne-François Vidocq, o primeiro “policial civil investigativo” em sentido conotativo, criador do primeiro órgão de polícia investigativa moderna em sentido denotativo.

FIGURA 8: Eugene-Fraçois Vidocq por Marie Gabriel Coignet

 

             EUGENE-FRANÇOIS VIDOCQ nasceu em 23 de julho de 1775 e morreu em 11 de maio de 1857, quando adolescente foi preso por furtar de seus pais, ficando alguns dias na cadeia. Entrou para Regimento de Bourbon, se alistando em 1791, tendo uma carreira de deserções, marcadas por prisões, diversas fugas e recapturas.

             Após uma vida marcada por crimes, prisões e fugas, quando detinha 33 anos foi mais uma vez preso, momento em que ofereceu seus ‘trabalhos’ como um informante da polícia, sendo que assim atuou nas prisões de Bicêtre[19] e em La Force[20], onde sondava seus detentos e transmitia a sua informação sobre as identidades forjadas e crimes não resolvidos para o chefe de polícia de Paris.

Eu acredito que eu poderia ter me tornado um espião perpétua, até então era impossível supor que qualquer conivência existia entre os agentes do poder público e eu. Até mesmo os porteiros e guardas estavam na ignorância da missão que me foi confiada. Adorado pelos ladrões, estimado pelos bandidos mais determinados (até mesmo para esses miseráveis ​​endurecidos há um sentimento que eles chamam estima), eu sempre podia contar com sua devoção a mim[21].

Após quase dois anos, Vidocq foi libertado e continuou a trabalhar como agente secreto para a polícia de Paris, usando seus contatos e sua reputação no submundo do crime para ganhar a confiança, se disfarçou como fugitivo e pôs-se a aprender sobre crimes e sobre o planejamento destes, passando a usar disfarces e outras identidades para não ser descoberto e continuar seu trabalho auxiliar.

No ano de 1811, informalmente, Vidocq criou a Brigada de La Sûreté, sendo reconhecida no ano de 1812 como uma unidade policial de segurança tendo ele como líder. No ano de 1813, Napoleão Bonaparte assinou um decreto que fez da brigada uma força policial denominada, a partir de então, de Sûreté Nationale.

FIGURA 9: Heráldica da Sûreté Nationale

Vidocq treinou seus agentes de equipe para utilização de técnicas de disfarce, desenvolvendo técnicas de infiltração em ambientes criminosos, ainda, detinha uma abordagem diferente para o implemento do interrogatório, jantando com os presos antes de levá-los aos cárceres, desta forma acaba recrutando informantes e obtendo confissões, diminuindo – consideravelmente – os índices criminais da cidade de Paris. Vidocq e seus agentes visitavam as prisões para memorizar os rostos dos presos (técnica), participava de audiências judiciais para observar espectadores nas galerias públicas e verificar possíveis cúmplices (técnica).

Vidocq visitava regularmente as prisões para memorizar os rostos dos presos e fez seus agentes fazer o mesmo. A polícia inglesa adotou este método. Até o final de 1980, os investigadores britânicos participaram audiências judiciais para observar os espectadores nas galerias públicas e tornar-se consciente de possíveis cúmplices. Ainda, para cada pessoa presa criou um cartão índice com uma descrição pessoal, com diversas informações de condenações anteriores, modus operandi, entre outras.

Essa foi a gênese da polícia judiciária francesa, a polícia investigativa. A importância de Vidocq ainda foi maior, sendo, inclusive, citado diversas vezes até por Cesare Lombroso, pai da criminologia, em sua obra O Homem Delinquente, como nesta assertiva retirada do referido livro: “Os ladrões são tão estúpidos que não tentam fazer-se espertos com outros. Muito, magrado eu soubesse ser delatores, contavam-me os projetos deles. (Vidocq)[22].

 

1.5 – DAS CONCLUSÕES

Percebe-se no, contexto apresentado nesta narrativa, que a investigação criminal detém origem na própria gênese da vida social, sendo presença anterior ao próprio direito penal, digo, antes mesmo de se pensar em uma pena por determinada conduta, já tínhamos o raciocínio de se reconstruir um fato histórico e determiná-lo quanto às circunstancias de sua ocorrência.

Desde a elaboração dos mitos, passando pela formulação das primeiras legislações na idade antiga, indo da investigação privada à investigação pública, com atuação romana, depois com a idade média, o direito germânico e o direito canônico com o caráter inquisitivo, até chegarmos à atuação de Vidocq e a criação da primeira unidade policial de funções investigativas semelhantes ao trabalho de polícia judiciária hodierno.

O caminho percorrido não é de grandeza linear, não é uma linha que se ascende de forma ininterrupta, mas sim, uma seqüência tortuosa de vários caminhos que se conectaram no momento de formação do conceito de cidade modernas (centro de produção/fabril), bem como na alteração criminógena formada por este fenômeno de perpetuação da cidade e sua formação social (bares, teatros e demais espaços públicos).

Por outro lado, a consolidação da instituição Sûreté, criando métodos de identificação, de vinculação de autores a crimes, não deixa de ser, um exercício de lógica no qual o arbítrio estatal é diminuído, ou seja, a criação de uma polícia investigativa é, neste sentir, o fortalecimento da própria comunidade a qual esta serve, impedindo a punição desenfreada e sem lastro (elementos de convicção). Em outras palavras, a investigação criminal encontra-se desde os primórdios limitando e direcionando o descompasso e desprazer causado pelo crime.

 

 

[1] Delegado de Polícia Civil do Estado do Tocantins; Especialista em Ciências Criminais; Especialista em Direito da Administração Pública; Especialista em Criminologia; Especialista em Gestão de Segurança Pública; Especialista em Medidas Operativas de Combate ao Narcotráfico.

[2] SANTOS, Célio Jacinto dos. Teoria da Investigação Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2020. (pág. 07)

[3] HESÍODO. TEOGONIA, a origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. 7ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2007. (pág. 141)

[4] GUEDES, Maria Helena. OS FILHOS DE GAIA. Joinvile: Clube dos Autores, 2016. (pág. 92/93)

[5] VIRGILIO, Publio. ENEIDA. Trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983. (pág. 224/263)

[6] ____ GUEDES. (pág. 193/194)

[7] Franchini, Ademilson; Seganfredo, Carmen. As melhores histórias da mitologia nórdica. Porto Alegre/SC: Editora Artes e Ofícios, 2004. (pág. 159/160)

 

[8] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 2ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2015

[9] HAMMURABI, Rei de Babilônia. O código de Hammurabi, introdução, tradução e comentários de E. Bouzon. Petrópolis: Vozes, 1976. pág. 25

[10] HAMMURABI, Rei de Babilônia. O código de Hammurabi, introdução, tradução e comentários de E. Bouzon. Petrópolis: Vozes, 1976. pág. 28

[11] Conselhos aos governantes / Isócrates ... et al. - Brasília: Senado Federal, 1998. Pág. 113.

[12] CÓDIGO DE MANU. Disponível em: https://www.docsity.com/pt/codigo-de-manu/4758411/. Acesso em 23 de mai. de 2020

[13] MEIRELES, Jose Dilermano. Ministério Público: sua gênese e sua história. Brasília, 1983. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181585/000414210.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 18.07.2020 (pag. 3)

[14] COGAN, José Damião Pinheiro Machado. Mandado de Segurança na Justiça Criminal e Ministério Público. 1ª ed. São Paulo. Ed. Saraiva. 1990. (p. 254)

[15] SANTOS, Célio Jacinto dos. Teoria da Investigação Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2020. (pág. 2)

[16] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – Parte Geral – vol. 1. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. (pág. 77)

[17] BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. (pág 69)

[18] KRAMER, Heinrich. SPRENGER, James. O martelo das Feiticeiras. Trad. Paulo Fróes; Rose Marie Muraro; Carlos Byington. 5ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2020. (pág. 393)

[19] Prédio francês utilizado como prisão, bem como asilo para doentes mentais e hospital. Marquês de Sade ficou internado nele.

[20] Prisão francesa criada em 1780 no prédio pertencente anteriormente à Duque La Force

[21] Memórias de Vidocq. (tradução livre) Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k510007.notice. Acesso em: 17.07.2020 (pag. 190)

[22] LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinqüente. Tradução Sebastião José Roque. São Paulo: Editora Ícone, 2016. (pág. 137)