Júlio César Ballerini Silva*
INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
O tema proposto é muito oportuno, eis que muitos não viveram os tempos que antecederam a Magna Carta de 05.10.1988, sendo muito difícil ter a noção de como funcionava o direito privado antes e depois da promulgação, e como a interpretação que os Tribunais Superiores foram dando a institutos constitucionais e correlatos para que chegássemos ao quadro atual.
Antes de mais nada, impende ponderar no sentido de que o país, em meados de 1988, tempo de promulgação da Constituição Federal, convivia com diplomas legislativos muito longevos – no âmbito do direito privado observava-se o monumento do individualismo que seria o Código Civil de 1916, as obrigações não se regiam por um único diploma, eis que também reguladas pelo Código Comercial de 1850, não havia nem ECA nem CDC.
Somente cerca de menos de vinte anos antes da Constituição, as mulheres haviam conquistado o direito de dispor de seus próprios salários se trabalhassem fora pelo Estatuto da Mulher Casada (sim, a mulher maior, casava-se e tornava-se praticamente incapaz, não ficando nem mesmo com a gestão do seu salário até meados de 1960).
Em síntese, convivíamos, em final de século XX com legislações que datavam do período do “Oitocentismo” (século XIX ou período de 1.800 a 1899). Não se esqueça, o Código Comercial que regia a vida das sociedades então ditas comerciais (a partir do regime dos Atos de Comércio do regime imperial) e com um Código Civil que incorporava valores do patrimonialismo exacerbado e liberdade sem limites dos tempos da Revolução Francesa (não se esqueça que o Código Civil de Bevilácqua – 1.916 abeberou-se nas fontes do Code Napoleon – Código Civil francês ou Código Napoleônico de 1804 que se inspirava nos ideais da Revolução Francesa ou o livro burguês – o BGB – Código Civil alemão de 1.896).
Tal sistema legal fazia com o que o país se regesse por leis que cultuavam valores com cem, duzentos anos de atraso. Isso gerava situações sociais insólitas (no âmbito do direito de família, para se ter um exemplo, o marido poderia anular um casamento se constatasse que a mulher não seria virgem ao tempo das núpcias, no prazo de dez dias, não havia previsão de união estável e se a mulher fosse considerada culpada pelo fim de um casamento perderia quase tudo, de pensão a guarda e visita de filhos, estes poderiam ser tratados de modo diferente pelo pai, grande e poderoso gestor da família tradicional, heterossexual – o gestor do pátrio poder. Tudo isso foi impactado pelo implemento de uma nova ordem constitucional, em 1988.
Ou seja, em pleno final de século XX nos encontrávamos apegados ao que regia a sociedade europeia antes que se considerassem valores como aqueles adquiridos no Estado de Bem Estar Social ou New Deal (política empregada pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt para por fim à crise econômica dos Estados Unidos aos tempos da quebra da Bolsa de Nova York, no fim dos anos de 1.920).
O período da década de 1.980, no Brasil, aliás, se encontrava conturbado, havia uma forte pressão pelo fim do Governo Militar que, em sua Revolução (sim, como a transição se deu pelas regras previstas no texto constitucional de então, tecnicamente não foi golpe, foi transição, do ponto de vista técnico por mais que se queira estabelecer uma carga ideológica ao termo golpe militar tão em voga em certos segmentos históricos mais à esquerda – isso é permeado por grande carga ideológica) chegou ao poder, diga-se de passagem, com grande apoio popular, mas depois de duas décadas se ansiava pelo fim daquele regime (e certamente isso foi impulsionado por insucessos de políticas econômicas ao final dos anos de 1.970 – antes disso o crescimento econômico não gerava grandes pressões políticas).
Isso levou a negociações intensas por uma transição mais ou menos pacífica e ordenada do poder, pondo fim ao período militar. O problema residia no fato de que os oposicionistas ao regime militar estavam apoiados por uma miríade de grupos, o que levou a intensas negociações, fazendo com que o texto constitucional representasse anseios de grande número de interesses, desbordando numa Constituição que disciplinasse assuntos que não são muito próprios sob uma perspectiva materialmente constitucional (disciplina vocacionada a analisar como se constituirão os poderes, quais seus limites, como se garantir sua harmonia, quais as cláusulas pétreas etc).
Vai daí que o texto constitucional passou a prever assuntos muito próximos de outras disciplinas e que não seriam próprios de um Carta Política – como política sobre idosos, sobre infância, sobre família, sobre lazer e desporto e por aí vai). Isso se repercutiu no âmbito do direito privado brasileiro (hoje chega-se a mencionar ideias – sabe-se lá se para disciplinar a técnica mais refinada ou se para estancar a Lava Jato – em se criar mais um Tribunal Superior – dividindo-se o exame de matéria materialmente constitucional para o STF e deixando matérias apenas formalmente constitucional para exame deste outro órgão, como por exemplo, as repercussões penais, civis e trabalhistas do texto constitucional).
No caso do direito privado, não resta dúvida de que o regime econômico determinado pelo texto constitucional (artigos 170, inciso IV e artigo 1º, inciso IV) seja, efetivamente, o capitalista (por isso se prever, de modo expresso a garantia dos valores que são pilares deste sistema, quais sejam, a livre iniciativa e a livre concorrência – e que isso sirva da parâmetro para se analisar a carga tributária, por exemplo, eis que nossos tributos, já muito altos não podem começar a beirar as raias da expropriação – índices superiores ou tangentes a 50%, eis que esse foi o caminho do comunismo em várias partes do mundo e da planificação econômica).
No entanto, o texto constitucional suaviza o tom das tratativas contratuais, eis que não se adota um regime de capitalismo selvagem, irascível, mas um capitalismo mais aproximado dos ideais de um New Deal eis que tais garantias (livre concorrência e livre iniciativa) são temperadas pela necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III CF) e da solidariedade social (consecução de uma sociedade livre justa e solidária – do artigo 3º da Carta Política). Sobre o tema, o quanto ponderado por José Afonso da Silva, em relação a tanto, dizendo muito em pouco:
[...] a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social
Segundo André Ramos Tavares, a respeito da liberdade de contratar, enquanto fundamento deste direito de uma livre iniciativa:
A liberdade de contratar envolve: 1) a faculdade de ser parte em um contrato; 2) a faculdade de se escolher com quem realizar o contrato; 3) a faculdade de escolher o tipo do negócio a realizar. 4) a faculdade de fixar o conteúdo do contrato segundo as convicções e conveniências das partes; e, por fim 5) o poder de acionar o Judiciário para fazer valer as disposições contratuais (garantia estatal da efetividade do contrato por meio da coação).
Ou seja, diante disso, o foco do direito civil sai da ampla liberdade (laissez faire, laissez passet) do oitocentismo do Código Napoleônico e do patrimônio, mudando o norte do direito privado para o fenômeno da personalização das relações (dignidade da pessoa humana) evitando-se formações de processos de marginalização ou exclusão social.
Importante observar, no entanto, que, a despeito desses conceitos serem vagos e elásticos, não podem perder no norte da bússola, no sentido de tornarem o ambiente relacional instável (afinal de contas o exercício da livre iniciativa e da livre concorrência pressupõem certa previsibilidade para que o risco não se torne intolerável) entender-se de modo diverso, sempre com a maior vênia possível, implicaria em manifesta vulneração do princípio da segurança jurídica, princípio este expressamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, sendo uma decorrência da justified trust do direito anglo-saxão, ou seja, para que o Poder Judiciário ganhe a confiança justificada da população deve zelar pela estabilidade e não pela instabilidade das relações jurídicas – e se tem entendido como garantia constitucional o princípio da segurança jurídica.
A respeito, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, as considerações tecidas pelo Ministro Celso de Mello, em julgamento realizado pelo Pretório Excelso em 26.03.2.010:
“Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado” ... Aponta-se ainda a “Proteção da Confiança”, segundo a qual “a fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado (cidadão) e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro”.
Sobre a lógica de uma certa previsibilidade, a jurisprudência recomenda, como medida de boa prudência, que se empregue a técnica de ponderação entre princípios de modo que prevaleça o valor mais razoável, em cada caso concreto. Sobre a incidência do pacta sunt servanda como regra no direito pátrio, vem se manifestando a jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado:
STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 1413818 DF 2013/0357088-7 (STJ) Data de publicação: 21/10/2014 Ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. LOCAÇÃO DE ESPAÇO EM SHOPPING CENTER. CLÁUSULA CONTRATUAL LIMITADORA DO VALOR DA REVISÃO JUDICIAL DO ALUGUEL MENSAL MÍNIMO. RENÚNCIA PARCIAL. VALIDADE. PRESERVAÇÃO DO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA. 1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual cumulada com pedido revisional do valor do aluguel mensal mínimo. 2. Recurso especial que veicula a pretensão de que seja reconhecida a validade de cláusula de contrato de locação de imóvel situado em shopping center que estabelece critérios para a revisão judicial do aluguel mensal mínimo. 3. O princípio do pacta sunt servanda, embora temperado pela necessidade de observância da função social do contrato, da probidade e da boa-fé, especialmente no âmbito das relações empresariais, deve prevalecer. 4. A cláusula que institui parâmetros para a revisão judicial do aluguel mínimo visa a estabelecer o equilíbrio econômico do contrato e viabilizar a continuidade da relação negocial firmada, além de derivar da forma organizacional dos shoppings centers, que têm como uma de suas características a intensa cooperação entre os empreendedores e os lojistas. 5. A renúncia parcial ao direito de revisão é compatível com a legislação pertinente, os princípios e as particularidades aplicáveis à complexa modalidade de locação de espaço em shopping center. 6. Recurso especial provido.
Diante disso, surgem, como apontam autores como Nelson Rosenvald de Cristiano Chaves de Farias (Direito Civil, Parte Geral), novos subprincípios de direito privado, afinado com esses valores constitucionais – ganham relevância os fatores de socialidade, operabilidade, eticidade e concretude (no âmbito do direito de família passa-se à análise de outro subprincipio ou valor – a questão da afetividade).
Pela ideia de socialidade, todos os institutos de direito privado passam a ter função social (não só a propriedade como consta do artigo 5º CF ou o contrato como consta dos artigos 421 e 2035, par. único CC), daí se evoluir para a função social da posse, da família, do testamento (veja-se a polêmica em torno do que vem sendo chamado testamento magistral pelo precedente do mui digno Juízo de Guaxupé-MG em que o Magistrado a partir de tais premissas entendeu ser possível o controle de cláusulas testamentárias que ofendam a função social tratando-se netos de modo assimétrico).
A ideia de socialidade enquanto função social é conceito caro a autores como Miguel Reale (idealizador do atual Código Civil), Roberto Senise Lisboa e Judith Martins Costa, estando consubstanciada, desde há muito, em nosso sistema jurídico pela ideia de necessidade do Julgador ficar atento às exigências do bem comum e aos fins sociais a que a lei se destina – artigo 5º LINDB (essa norma, antes lei ordinária agora ganha contornos de constitucionalidade à luz da dita ideia de solidariedade social).
Por eticidade, parte-se de postulados idealizados por Karl Larenz no sentido de que normas não podem ser aplicadas destituídas de um compromisso com a Justiça (aliás, aplicações de normas desapegadas desse ideal de Justiça descambaram em situações teratológicas como as vivenciadas em regimes totalitários, que o digam os judeus e não arianos na Alemanha de Carl Schmidt ou os cossacos na União Soviética Stalinista - o próprio Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito jamais pregou que o direito deveria ser aplicado sem preocupação com a ideia de Justiça – apenas quis fazer um experimento teórico para situar o cientista do direito).
Mas não é só !!! Observe-se o quanto o próprio Miguel Reale aponta a respeito da eticidade enquanto decorrência da solidariedade constitucional, orientada, sobre tudo, no combate aos atos praticados com abuso de direito:
A eticidade – Procurou-se superar o apego do Código atual ao formalismo jurídico, fruto, a um só tempo, da influência recebida a cavaleiro dos séculos XIX e XX, do Direito tradicional português e da Escola germânica dos pandectistas, aquele decorrente do trabalho empírico dos glosadores; esta dominada pelo tecnicismo institucional, haurido na admirável experiência do Direito Romano. Não obstante os méritos desses valores técnicos, não era possível deixar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da técnica jurídica , que com aqueles deve se compatibilizar. Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, o art. 113,na Parte Geral, segundo o qual "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". E mais este; "Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelos eu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." Lembro como outro exemplo o art. 422 que dispõe quase como um prolegômeno a toda à teoria dos contratos, a saber: "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé." Freqüente é no Projeto a referência à probidade e a boa-fé, assim como a correção (correteza) ao contrário do que ocorre no Código vigente, demasiado parcimonioso nessa matéria, com se tudo pudesse ser regido por determinações de caráter estritamente jurídicos
Assim, via de regra, colidiriam com nossa ordem constitucional, os atos praticados com abuso de direito (no direito português, autores como José Ascenção tem separado os atos de abuso de direito em atos chicaneiros e atos emulativos, ambos ilícitos – no segundo caso, os atos emulativos ou atos próprios, seriam aqueles direcionados a causarem dano ao outro, enquanto nos chicaneiros apenas se abusa, independente da intenção direcionada, ou não a se causar danos).
Não obstante o artigo 187 CC os considere ilícitos, nossa jurisprudência tem entendido que a prática de tais atos leve à incidência de aplicação das regras da responsabilidade civil objetiva (Enunciado nº 37 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal), mas, pelo óbvio, não obstante haja indenização sem necessidade de prova de dolo ou culpa, o fato de se comprovar o dolo (ato emulativo e não chicaneiro) será relevante para a exasperação do valor da indenização.
Vale destacar esses atos próprios, como não poderia deixar de ser são contrários ao princípio da boa-fé objetiva - dever geral de probidade que nos é imposto pelo artigo 422 CC, tendo o legislador se valido da técnica de estabelecer o instituto como uma cláusula geral. Cada Magistrado, em cada caso concreto, avalia, se a postura cumpre, ou não o princípio da boa-fé objetiva (o que, logicamente, pressupõe motivação adequada).
Esses atos em abuso de direito, pelo óbvio, implicam em desatendimento do princípio geral de boa-fé objetiva. Há algumas situações que tem sido padronizadas pela doutrina e pela jurisprudência, como evidenciadoras desses abusos de direito. São elas a vedação de comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium), a vedação da surpresa por conduta inesperada (tu quoque), o dever de mitigar as próprias perdas (Enunciado nº 169 das Jornadas de Direito Civil - conhecido pelo bracardo anglo-saxão - duty to mitigate the loss), a substancial performance (adimplemento substancial que evidencia abuso do direito do credor em pedir medidas desproporcionais pelo inadimplemento do devedor – por exemplo, pedir a prisão civil quando apenas se devia pequena diferença de pensão, como decidido no ano de 2018 pela 4ª Turma STJ) e a supressio e surrectio (na supressio abandona-se a posição jurídica a que se tem direito, por razoável lapso de tempo, mas após, para causar prejuízo ao outro, exercer o direito abusivamente - se um perde por supressio o direito nessas condições a outra parte prejudicada passa ter uma direito nascido, surreição, no sentido contrário).
Sobre o venire contra factum proprium, impende ponderar que implica em verdadeiro desdobramento do princípio da confiança, não se admitindo que, após se gerar certas expectativas na outra parte, se altere o comportamento. Valem as seguintes ponderações doutrinárias:
“Pois bem, a proibição de comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) é modalidade de abuso de direito que surge da violação do princípio da confiança decorrente da função integrativa da boa fé objetiva (CC, art. 422). (...) a vedação de comportamento contraditório obsta que alguém possa contradizer seu próprio comportamento, após ter produzido em outra pessoa, uma determinada expectativa. É, pois, a proibição da inesperada mudança de comportamento (vedação da incoerência), contradizendo uma conduta anterior adotada pela mesma pessoa, frustrando as expectativas de terceiros. Enfim, é a consagração de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa.” (DIREITO CIVIL TEORIA GERAL - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, 8ª Edição, 2ª Tiragem, Editora Lumem Juris)
A vedação do comportamento contraditório tem ganho tal relevância que, inclusive, tem se espraiado para outras esferas do direito. A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem reconhecido tal dever até mesmo no processo penal, impedindo seja acusação (veja-se o exemplo dado por Fernando Capez, em que um promotor pede absolvição – o Juiz absolve e, logo em seguida, a Promotoria apela da sentença buscando a condenação), seja defesa (réu preso arrolando testemunhas na China, no Zaire e na Bósnia Herzegovina e reclamando de excesso de prazo no encerramento da instrução), de se portarem em desacordo com o venire contra factum proprium.
Como deriva do princípio da confiança, que permeia o direito público, não tem sido incomum encontrar-se julgados no âmbito do direito tributário e do direito administrativo versando sobre a questão da incidência do venire contra factum proprium igualmente nessas plagas. Igualmente se cuida de princípio acolhido no processo do trabalho.
No âmbito do direito internacional tem sido igualmente vedado o comportamento contraditório entre países através da conhecida cláusula de Stoppel ou Estoppel, como queiram – em doutrina se encontram as duas grafias (lembra-se comumente o exemplo do caso da refinaria da Petrobrás que foi apropriada pelo Governo da Bolívia através de sua abusiva nacionalização, promovida por Evo Morales, que lesou a estatal brasileira, dantes iludida a lá investir).
O tu quoque é parte de famosa expressão latina “tu quoque Brutus filie mi” – Até tu, Brutus, meu filho? Referência literária a uma suposta frase dita pelo ditador romano Júlio César ao ser assassinado por um grupo que incluia seu enteado, no SPQR – Senatus Populusque Quorum Romanum. Mais não há para ser dito! É uma ideia que revela surpresa, que caracteriza indignidade do comportamento da outra parte lesando a boa-fé do outro contratante.
Imagine-se o caso julgado pelo Tribunal Bandeirante no qual o funcionário que se desligou da empresa, pretende continuar no plano de saúde mantido por seu empregador. Tal direito resta assegurado na Lei dos Planos de Saúde(Lei nº 9.656/98, em seu artigo 31), mas de modo surpreendente para o consumidor, a operadora de plano de saúde, pretende compulsoriamente obrigá-lo a aceitar outro plano mais desvantajoso ou excluí-lo do sistema. Situação clara de tu quoque, enquanto conduta abusiva da operadora de plano de saúde (TJ SP – Apelação Cível 0038186-64.2010.8.26.0577, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Cesar Ciampolini, j. 18.06.2013). Ainda sobre o tu quoque:
STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 1192678 PR 2010/0083602-0 (STJ) Data de publicação: 26/11/2012 Ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADEDE TÍTULO DE CRÉDITO. NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA. \DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU CAUSA. OFENSA AOPRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA NOS BROCARDOS LATINOS 'TU QUOQUE' E 'VENIRE CONTRAFACTUM PROPRIUM'. 1. A assinatura de próprio punho do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória. 2. Possibilidade de criação, mediante lei, de outras formas de assinatura, conforme ressalva do Brasil à Lei Uniforme de Genébra. 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da assinatura escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto, porém, em que a assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. 5. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. 6. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
E dentre essas condutas abusivas, ainda se encontra a vedação do que se tem denominado o duty to mitigate the loss, ou dever do credor de minimizar as próprias perdas (mencionado no Enunciado nº 169 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal). São exemplos de abusos corriqueiramente verificados no dia a dia. Muito comuns em ações de acidente de veículos. Aliás, desde o advento do famoso BGB (Código Civil alemão de 1.896), marco da ciência jurídica de uma era, já se antevia em seu artigo 254 a gênese desta cláusula evidenciadora de abuso.
Pense-se em alguém que tem um carro muito usado, bastante antigo, sem originalidade nenhuma, mas que, em colisão com veículo de empresa de transportes (a cobiça surge a partir daí), busca fazer três orçamentos para reparos em empresas que reparam e restauram automóveis de luxo e concessionárias de veículos importados. Certamente os valores serão extorsivos ante o que se buscaria em oficinas mais modestas que consertariam o carro, com qualidade (há ótimos funileiros avulsos no mercado).
De igual sorte, ao invés de se buscar melhores preços no google, a suposta vítima, vai a cata de peças originais de fábrica. Obviamente que se busca utilizar de uma esperteza, onerando-se desmedidamente quem vai indenizar, e, muitas vezes, após a procedência da ação e o percebimento de valores nababescos, constata-se que a vítima, às mais das vezes, acaba fazendo o serviço nos estabelecimentos que cobram preços mais módicos, com peças do mercado paralelo.
Tal conduta é abusiva, oneram-se propositadamente as próprias perdas, que deveriam ter sido mitigadas, o que se busca, geralmente, seria o enriquecimento sem causa, outra providência vedada por lei (artigo 884CC). Admitindo-se a incidência do duty to mitigate the loss, em matéria de acidentes de veículos, de se destacar, verbi gratia, o Julgado oriundo do TJMG. 16ª Câmara Cível, AC 1.071.07,183692-1/001, Rel. Des. Wagner Wilson, j. 11.03.2.009, DJ 17.04.2009. Nesse sentido, o quanto apontado por Denise Pinheiro, a respeito do tema em análise:
Para os fins objetivados no presente estudo, conceitua-se duty to mitigate the loss como a possibilidade de se exigir da vítima um comportamento voltado para a minimização da ofensa que lhe foi provocada de forma antijurídica, mediante o emprego de medidas razoáveis. Para a elaboração desse conceito, partiu-se da consideração de que o nexo de causalidade entre a conduta do agente e a lesão suportada pela vítima restou consolidado e, ainda assim, poder-se-á exigir do ofendido uma atuação visando à redução do próprio prejuízo, beneficiando, com isso, o ofensor, que, então, pagará uma indenização menor justamente em virtude de um comportamento da vítima que, igualmente, será beneficiada pela redução do seu dano, devendo os seus esforços serem recompensados, por meio do ressarcimento do montante empregado para a minimização do prejuízo, havendo ainda que se considerar a vantagem da redução do custo social que, inevitavelmente, todo o dano representa.
Supressio e surrectio, outras expressões latinas, relacionam-se com supressão (perda) e nascimento (basta ver ressurectio – ressureição significa nascer de novo – assim vocês não esquecem). Essas expressões andam juntas, eis que se suprime o direito de um que apenas o utiliza abusivamente após longo abandono, fazendo nascer para o outro, um direito no mesmo sentido. Na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Goiás, se colhe caso interessante em que um condomínio, em sua convenção, apenas autorizava que carros pequenos fossem guardados nas garagens de cada condômino.
Ocorre que, por longos anos, um dos condôminos estacionou sua caminhonete cabine dupla na sua vaga, o que dificultava a manobra de sua vizinha. Nunca o condomínio adotou qualquer postura para impedir a utilização da vaga por caminhonete. A vizinha nunca protestou formalmente, permitindo por longos anos que isso sucedesse. Isso perdurou até que ela assumiu a vaga de síndica e interpelou o proprietário da caminhonete.
Aí, como diria Camões, em seus conhecidos Lusíadas, a Inês é morta. Já diziam os latinos dormientibus non sucurrit jus, ou, em tradução literal e livre, o direito não socorre a quem dorme. Ela perdeu o direito de reclamar pela supressio eis que, por longos anos, permaneceu inerte, a fato de somente ter reclamado quando foi nomeada síndica revela o caráter abusivo do exercício do direito (desforra), fazendo surgir para o dono da caminhonete (surrectio) o direito de guardar carro grande em vaga pequena.
Muitas situações tem autorizado o reconhecimento da supressio e da ressurectio no direito brasileiro – pensões de ex-cônjuges ou mesmo filhos que não são executada durante anos e depois se busca tudo de uma só vez, proprietários de imóveis ocupados que vem reclamar da invasão quando se avizinha o lapso de usucapião, perdendo tutela possessória, eis que permitiram a ocupação por anos a fio etc. Sobre a questão, por exemplo:
TJ-MG - Apelação Cível AC 10081120011861001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 01/08/2014 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE - DIREITO DE PROPRIEDADE - IRRELEVÂNCIA - POSSE ANTERIOR - ESBULHO CARACTERIZADO - AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE - SUPRESSIO - SURRECTIO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO. - As ações possessórias têm como objetivo discutir, tão somente, o direito de posse, sendo irrelevante, portanto, as alegações de direito de propriedade, conforme previsto no § 2º do artigo 1210 do Código Civil. - O instituto da supressio e da surrectio, respectivamente, ocorre quando a ausência do exercício de um direito com o passar do tempo enseja a impossibilidade do seu exercício tardiamente, sob pena de desrespeito ao princípio da boa-fé, ao passo que, paralelamente, o exercício contínuo de determinados atos faz nascer um direito. - Assim, a inércia do anterior proprietário do imóvel, e a posterior falta de oposição à posse por parte dos herdeiros respectivos, proíbe a pretensão de desocupar aquele que reside em parte do imóvel há mais de vinte anos, de boa-fé, eis que cria para ele um direito subjetivo de continuar na posse direta de tal bem. - Recursos não providos. Sentença mantida.
No mesmo sentido, entendimento do TJRS:
TJ-RS - Agravo de Instrumento: AI 70042234179 RS agravo de instrumento. Execução de alimentos. Prisão. Rito artigo 733. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO OBRIGACIONAL PELO COMPORTAMENTO CONTINUADO NO TEMPO. CRIAÇÃO DE DIREITO SUBJETIVO QUE CONTRARIA FRONTALMENTE A REGRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. SUPRESSIO. Em atenção a boa-fé objetiva, o credor de alimentos que não recebeu nada do devedor por mais de 12 anos permitiu com sua conduta a criação de uma legítima expectativa no devedor e na efetividade social de que não haveria mais pagamento e cobrança. A inércia do credor em exercer seu direito subjetivo de crédito por tão longo tempo, e a consequente expectativa que esse comportamento gera no devedor, em interpretação conforme a boa-fé objetiva, leva ao desaparecimento do direito, com base no instituto da supressio . Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. No caso, o filho deixou de exercer seu direito a alimentos, por mais de 12 anos, admitindo sua representante legal que a paternidade e auxílio econômico ao filho era exercido pelo seu novo esposo. Caso em que se mostra ilegal o decreto prisional com base naquele vetusto título alimentar. DERAM PROVIMENTO. Unânime.
Por fim, mas não menos importante, tem-se considerado prática abusiva quando o credor retoma o bem quando a dívida está quase toda adimplida. Não que o credor não possa receber seu crédito, o abuso estaria na pretensão, por exemplo, de pretender a prisão civil de um devedor quando mais de noventa por cento do débito está pago, daí se dizer que ocorre esse adimplemento substancial (substancial performance).
Vivemos, ademais, numa democracia representativa que cultua os valores de um Estado que deve ser democrático e de direito – e esse direito deve estar apegado à busca dessa solidariedade social como norte da bússola do sistema – do contrário cambiaremos para um sistema totalitário incompatível com nossa ordem constitucional, o que faz da eticidade valor constitucional sensível para a interpretação do direito privado.
Esse direito, em tempos constitucionalizados deve se preocupar em respeitar as diferenças, as minorias e buscar garantir um equilíbrio de relações para estes grupos minoritários e desprotegidos, evitando a exclusão social mencionada acima – sempre se lembrando que minoria não é um conceito necessariamente numérico, mas um critério que leva em conta aspectos de desigualdade.
Nossa Carta Política, como asseverado, em mais de uma oportunidade pelo STF não prevê uma igualdade formal, mas uma igualdade material ou isonomia, a ideia platônica de que se deva tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, para igualá-los em oportunidades e condições de cidadania. Vem daí a ideia de que o direito deva prestigiar a operabilidade – daí identificarmos grupos minoritários e conceder-lhes tratamento assimétrico – desigual para igualá-los – caso da base da proteção do consumidor enquanto sujeito mais fraco e vulnerável que o fornecedor, de um modo geral.
E isso vale não só para o direito do consumidor, mas para a Infância e Adolescência, para Idosos e outros grupos minoritários. Quando um grupo é minoritário e tem prioridade legal se considera vulnerável, mas dentro das vulnerabilidades tem se reconhecido hipervulneráveis que tem tratamento prioritário – veja-se o caso, por exemplo, de uma criança que não está em situação de risco e tem a situação de sua guarda regulada pelo Código Civil, quando está em situação de risco, surge uma excepcional vulnerabilidade e a guarda se disciplina pelo ECA, mas quando, além disso, a criança está em um ambiente de violência doméstica, aplica-se a Lei Maria da Penha e mãe e criança são tidas como hipervulneráveis.
Outro exemplo: O idoso a partir de sessenta anos é considerado vulnerável, mas a partir de oitenta anos se torna hipervulnerável. E isso pode se dar quando se cumulam, para efeitos de operabilidade, várias vulnerabilidades gerando hipervulnerabildiade (idoso, portador de deficiência, em situação de superendividamento bancário). E a vedação de processos de exclusão social provocados por esses fenômenos agregada à dignidade da pessoa humana e prelados isonômicos gera a constitucionalização transversa dessa operabilidade.
Nosso texto constitucional se preocupou com a questão, eis que constitucionalizou a questão dos idosos, em vários dispositivos (por exemplo, a base da teoria do desamor – ou abandono afetivo que pode ocorrer em relação a menores em relação aos quais não se garanta convivência familiar – artigo 227 CF, também se aplica a idosos que sejam privados de tal convívio – artigo 229 CF). Nossa Constituição se preocupa com questões como o lazer e o desporto das pessoas, o que se sobreleva no caso de tais valores para pessoas vulneráveis (por exemplo consumidores , menores e idosos) ou hipervulneráveis (pessoas com deficiências graves ou octagenários).
A proteção de direitos de pessoas idosas suscita debates em sede constitucional como no se dá no caso da imposição de um regime matrimonial de separação obrigatória de bens a partir dos 70 anos de idade – alguns apontam, aí, nesga de preconceito, como se toda pessoa desta idade, num mundo com nossa tecnologia e acesso a tratamentos geriátricos fosse presa fácil ou tivesse capacidade reduzida – essa vedação em caráter absoluto é que poderia ser antevista como preconceito (mormente porque, por exemplo, pessoas com deficiência mental e intelectual – artigo 2º da Lei de Inclusão, podem escolher livremente seu regime de casamento – artigo 6º da mesma lei, com a garantia de capacidade civil plena).
Eis aí questão a ser analisada sob uma perspectiva de proporcionalidade, razoabilidade e ponderação. Há vozes de peso, inclusive, que apontam quebra da isonomia nesta questão da capacidade civil plena de pessoas com deficiência mental ou intelectual – eis que se põe em condições de igualdade com as pessoas antes ditas capazes pessoas que deveriam ser protegidas, por exemplo, em sede de contratações e outros atos jurídicos.
Não se nega que no campo da isonomia, em muito avançamos, firmando, inclusive, a Convenção de Nova York em 2007 que repercutiu na aprovação da Lei Brasileira de Inclusão de 2015, mas a lei deve comportar, ainda, alguns detalhamentos em sede de revisão para evitar distorções que prejudiquem pessoas que devem ser protegidas até em respeito à própria socialidade.
De igual modo, se tem a ideia de que verba cum effectu sunt accipienda (Carlos Maximiliano em seu Tratado de Hermenêutica apontava a tradução literal no sentido de que a lei não contém palavras ou expressões inúteis). Outro adágio latino a se destacar seria In Claris Cessat Interpretatio – na clareza cessa a interpretação, tudo isso conduzindo no sentido de que nossa ordem constitucional, no âmbito do direito privado, prestigia o valor concretude. Os atos jurídicos devem ser pensados e aplicados de modo a que surtam efeitos concretos no mundo dos fatos.
Ou seja, aí outra aplicação do texto constitucional que poderia ser tida como embrião de proteção da boa-fé objetiva, eis que armadilhas que visem retirar de algum contrato ou ato, seus efeitos esperados, implicará em ato comprometido à luz dessa concretude que deriva da proteção da própria dignidade da pessoa humana. O agir de qualquer pessoa deve ser fraterno pela solidariedade constitucional.
Outro ramo do direito fortemente impactado pelo texto constitucional foi o direito de família, com suas óbvias implicações e repercussões no direito das sucessões. Antes da Constituição, repita-se, família reconhecida pelo Estado era a formal (matrimonial) e heterossexual.
Alguns falam que a própria Constituição Federal vigente pressuporia que a família seria necessariamente monogâmica, eis que se refere, no artigo 226 a um homem e uma mulher. Mas há outros detalhes a examinar. Observe-se que no corpo dos parágrafos do artigo 226 havia insipiente proteção das famílias informais (uniões estáveis). A aspiração normal de uma família informal, ao tempo da promulgação, seria a conversão em casamento – união formal.
No entanto o modo de interpretar a realidade social à luz da Constituição Federal passou a se orientar no sentido de proteger não a formalidade da união, mas caminhou em sentido diverso, conferindo proteção formal onde houvesse um núcleo de afetividade.
Daí se extrai a conclusão inicial de que a família, na medida em que goza de proteção constitucional, passou a ser tida como um sistema jurídico (o conjunto vale mais do que a soma individual de seus membros – quando um individuo assume seu papel social de pai ou de mãe e de marido ou esposa ou companheiro seu valor aumenta agregando força ao grupo).
Em verdade a família passa a ser titular de direitos e obrigações sem ter adquirido capacidade própria – em linhas gerais, passa a ser um ente jurídico equiparado pela Constituição à pessoa (tal como se dá em relação ao espólio, a herança jacente etc.).
E não existe família de pessoa sozinha (embora a Súmula nº 364 STJ conceda proteção ao bem de família de pessoa solteira, isso não quer dizer que o solteiro seja família, mas, ao contrário, o mesmo passa a ter uma proteção análoga a uma família na proteção de seu lar). Família sempre implicará em uma união, mas a interpretação que a Constituição dá ao tema, a união não se aferirá pelo formalismo mas pelo núcleo de afeto formado (base da proteção ao parentesco sócio-afetivo e da multiparentalidade).
Daí as uniões informais (uniões estáveis, passarem a contar com a proteção constitucional, adquirindo o status de famílias). Mas, como separar uma união estável reconhecida como família, de outros tipos de uniões ? Por exemplo, de um concubinato.
Uma das chaves é a análise da questão dos contratos de namoro, por exemplo, como evolução do instituto da união estável no direito atual. Muitos de meus alunos já ouviram minha expressão no sentido de que o mundo seria um lugar perigoso para se viver e isso se lança diante do enorme risco de judicialização de tudo na sociedade moderna – o risco de alguém ser processado é enorme. Por conta do entendimento de que o núcleo de afeto permite o reconhecimento de uma união familiar, pessoas tem, de modo cada vez mais frequente entabulado contratos de namoro, de namoro qualificado e de união estável.
E como sabido, há vários tipos de famílias reconhecidos no direito brasileiro, desde há muito que não nos atemos apenas e tão somente aos modelos de família formal e matrimonial (opção lícita e legítima para aqueles que tenham um viés mais conservador e, sobretudo, as pessoas afeitas ao cumprimento de regras religiosas – sabe-se que o Estado é laico, mas simplesmente não se pode negar a validade de regras que prestigiem o fenômeno cultural religião – a própria Constituição prestigia o direito de liberdade religiosa, diga-se de passagem).
Pelo óbvio que a família matrimonial pode ser uma opção também para os não conservadores ou mesmo para ateus, é uma questão de opção, simplesmente. Mas, a par da existência de famílias formais (com a ideia de um vínculo matrimonial e formação de uma sociedade conjugal com seus direitos e deveres), o direito tutela, na mesma medida, a família informal.
Numa visão do início da formulação técnica do conceito de união estável, o que se observava seria o fenômeno de se separar a união estável da relação de concubinato, pelo simples fato de que, na primeira, não haveria impedimento para o casamento, situação evidenciada no segundo caso.
Vem daí a ideia de que a concubina, conceito a que se agregou carga ideológica negativa, seria a “amante” (ou o concubino seria o “amante”), eis que como estaria se relacionando com pessoa já casada, havendo impedimento para que se casasse, a união havida entre eles não seria passível de tutela para o direito, eis que haveria uma ideia de família monogâmica (a previsão do artigo 226 CF com referência à união de um homem com uma mulher).
Quando não havia impedimento para o casamento, por exemplo, duas pessoas solteiras, que poderiam se casar, se o quisessem, não haveria uma mácula ao conceito de família informal, vindo, daí, a ideia de ser possível uma união estável, diversa da situação de um concubinato.
No entanto, nem tudo é tão simples assim, eis que a legislação civil estabelece que o separado de fato (pessoa formalmente casada) poderia constituir união estável – vindo daí questionamentos no sentido de que a união estável não seria tão fácil, assim, de se separar de uma união concubinária, apenas e tão somente por conta do requisito impedimento matrimonial.
O foco deve ser colocado na função, ou não, de se constituir família – isso tornará uma pessoa formalmente casada e impedida de se casar novamente, mas separada de fato, em companheiro em união estável.
Observe-se a ênfase que se dá, no texto legal, em sua parte final no sentido de que: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Parte-se, portanto, desse marco diferencial seria a intenção, ou não, de se constituir família (artigo 1.723 CC – parte final) – se houve intenção haverá união estável, hetero ou homoafetiva.
Se não houve tal intenção, o caso poderá ser de um namoro ou de um namoro qualificado. Namoro qualificado seria a figura criada pelo Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, para designar situações em que os namorados moram sob um mesmo teto, mas continuam sem a intenção de constituir família (em recurso cujo número não se informa para preservar o sigilo de Justiça, mas que se encontra disponível em http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Destaque.... Acesso em: 14 mar. 2015).
Nesse mesmo sentido a orientação lançada como premissa número 2, da edição 50 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, dedicada à união estável:
"A coabitação não é elemento indispensável à caracterização da união estável" (precedentes citados: STJ, Ag. Rg. no AREsp 649.786/GO, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 4/8/2015, DJE 18/8/2015; Ag. Rg. no AREsp 223.319/RS, Rel. ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, julgado em 18/12/2012, DJE4/2/2013; Ag. Rg. no AREsp 59.256/SP, Rel. ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, julgado em 18/9/2012, DJE 4/10/2012; Ag. Rg. nos EDcl. no REsp 805265/AL, Rel. ministro Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3ª Turma, julgado em 14/9/2010, DJE 21/9/2010, REsp 1.096.324/RS, Rel. ministro Honildo Amaral de Mello Castro (desembargador convocado do TJ/AP), 4ª Turma, julgado em 2/3/2010, DJE 10/5/2010, e REsp 275.839/SP, Rel. ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 2/10/2008, DJE 23/10/2008).
De fato, morar ou não, debaixo de um mesmo teto, inclusive, não seria elemento necessário nem mesmo para uma família formal, matrimonial, mais tradicionalista e conservadora (são muitos casais, por exemplo, que trabalham em cidades distintas e se encontram apenas em finais de semana e feriados). Não faria sentido exigir isso em uma união que, por definição, seria considerada família informal.
Já não basta morar sob um mesmo teto para que se presuma a intenção de constituir família e haver união estável. Isso explica o número cada vez maior de contratos de namoro para evitar disputas sobretudo patrimoniais em caso de fim de relacionamento.
Isso porque, em se cuidando de pessoas maiores e capazes, dispondo sobre direitos patrimoniais, o que for ajustado em relação ao patrimônio prevalecerá, independentemente de ter havido, ou não, concurso para a construção de algum bem, em situação reiterada pela jurisprudência do mesmo STJ neste ano.
De todo modo, com relação a direitos existenciais, por exemplo, direito de obter pensão alimentícia (direito de personalidade de integridade física, na tradicional classificação de Rubens Limongi França), o acordo não produzirá efeito, eis que aí há limites de ordem pública que não são aptos a atingirem os direitos patrimoniais, sobre os quais, reitere-se, a disposição será livre..
Não se esqueça, ainda de que, nesses trinta anos de Constituição outros tabus foram rompidos na interpretação constitucional dos institutos de direito de família. Isso porque, na versão original, o texto constitucional pressupunha como família a união de um homem e de uma mulher – ou seja, isso pareceria excluir da proteção do texto as famílias monoparentais (homem ou mulher sozinho, com prole).
Tal ideia restou superada à luz do tratamento isonômico do afeto – não é menos família aquele que tenha apenas uma figura genitora (pai ou mãe) com sua prole. E, de igual modo, após intensas lutas, se verificou verdadeira revolução no que tange ao tabu da união entre pessoas do mesmo sexo (homoafetiva ou homoerótica).
Isso porque, pelos valores negociados aos tempos da abertura política que viabilizou o texto constitucional, a família seria composta por um homem e uma mulher – no entanto, há que se observar, em relação a tanto, o disposto no artigo 5º CF que prevê a igualdade não só de sexo, mas a partir do julgamento da ADPF nº 132 passou a ser entendida como uma questão de gênero.
Observe-se que seria preciso, à essa altura, já se separar o que seria sexo, do que seria gênero, do que seria orientação sexual. O sexo é um conceito biológico (ovário, escroto etc). Hoje tem se entendido, até mesmo, diante da igualdade de gênero, ser inconstitucional questionar-se sobre o sexo de alguém (por exemplo em um concurso público ou para se matricular alguém em alguma escola), o correto seria perquirir a respeito de seu gênero.
Em 2017 a Argentina votou lei no sentido de permitir o registro de nascimento sem sexo para quem o desejar (pessoa maior e capaz – embora eu saiba que alguns questionarão isso – mas é condição legal para a opção que a pessoa seja capaz de deliberar sobre isso).
No gênero o aspecto a se examinar não seria o sexo biológico mas como a pessoa se identifica psicologicamente (se sente homem ou se sente mulher). E nada disso se confunde com a orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual etc). Uma pessoa pode ter nascido homem, se sentir mulher e gostar de homem – não será homossexual como se pensa, mas heterossexual pelo fato de gostar de gênero diverso do seu, portanto hetero e não do mesmo homo – o jurídico campeia à larga do entendimento do homem vulgar nessa matéria.
E se ninguém pode ser discriminado sob pena de geração de processo de exclusão social vedado pelo ordenamento, tem-se que locais públicos não podem segregar pessoas pelo gênero – o STF em posicionamento recente condenou um Shopping Center de Santa Catarina por impedir que uma pessoa do gênero feminino, mas de sexo masculino ingressasse num banheiro feminino.
Essa a interpretação que se concedeu até o momento, concorde-se com ela, ou não. Mas ainda há fatores, me permitam a divagação, que podem ser sopesados, como, por exemplo, o respeito a sentimentos religiosos dos envolvidos – por exemplo, mulheres evangélicas ou homens evangélicos podem não se sentir confortáveis com isso – seria matéria apta à ponderação, evidentemente.
A questão é por demais delicada, eis que, a par de haver uma questão de gênero a ser observada, em outros casos isso pode esbarrar em outra liberdade pública, qual seja, o direito de liberdade religiosa (hoje em trâmite pelo Congresso Nacional, inclusive, tramita um projeto de lei que estabelecerá o Estatuto da Liberdade Religiosa). O fato é que não se pode pretender isolar a comunidade LGBT de acesso a banheiros adequados ao seu gênero, isso seria maneira de provocar um processo de exclusão social – não poderá haver um banheiro privativo para pessoas que se identifiquem com gênero diverso de seu sexo.
Isso seria ato de preconceito e geraria, sim, o dever de indenizar. Questão diversa, no entanto, seria a da ponderação em relação a outros direitos, o que, muitas vezes, não tem sido aceito por certos setores, como se dá em relação a princípios decorrentes do respeito religioso e do respeito para com a família.
Mas não há impedimento, por exemplo, para espaços como families roons ou espaços privativos para que famílias, sobretudo com filhos pequenos possam ter autonomia sobre como será abordado o tema, enquanto decorrência dos deveres de guarda e educação de seus próprios filhos, nos momentos que julgarem adequados para a discussão da sexualidade (por vezes mães sentem-se constrangidas, não por preconceito, mas pela tênue linha que separa valores religiosos e morais – tudo vai da existência de motivos relevantes, em que se tenham se que deparar em banheiros públicos, com suas filhas pequenas e pessoas que sintam mulheres e tenham, por exemplo, um pênis que poderá ser exposto – a questão trazida não tem nada de simplista eis que não se pode admitir preconceito mas igualmente não se pode tolher as famílias do momento para a opção da discussão do tema – e sei que serei atacado tanto por conservadores que querem impedir entrada em banheiros como por ativistas vanguardistas que querem o acesso em quaisquer condições inclusive para emular quem se incomode, mas, enfim, estou buscando balizas técnicas para a análise integral da questão). Isso também pelas técnicas de ponderação entre direitos que devem ser observadas, por exemplo, por gestores desses espaços.
A socialidade impede que ocorram soluções simplistas, maniqueístas e maquiavélicas (“nós e eles” – dividir para governar). Há que se buscar um espaço de consenso, em que o interesse da maioria conviva, de modo harmônico, com direitos individuais, sem que um macere o outro – não há liberdade absoluta para se fazer o que se quiser, tampouco ditadura da maioria. Não parece ter sido isso preconizado pelo constituinte como norte a dirigir os rumos do direito privado nacional.
Outra entidade familiar reconhecida pelo direito é a família mosaico ou reconstruída, informal ou não, em que remanescentes de famílias desfeitas pela perda de afeto ou outros eventos se reconstroem vivendo como se sistema fossem. Pai viúvo com filha pequena que vai viver com mulher solteira que tem dois filhos e ambos decidem ter mais um filho em comum – coisas impensáveis na ordem constitucional anterior que permitia até mesmo tratamento diferenciado para filhos ilegítimos.
A próxima fronteira que vem sendo desafiada pela interpretação que se dê ao tema em âmbito de STF é a questão da família poliafetiva (que não se confunde com a sociedade paralela – instituto congênere). Vamos ao exame:
Na sociedade poliafetiva, tem-se um único grupo familiar, constituído por mais de duas pessoas na posição de genitores – em três, já se cunharam as expressões triação (“meação de três”) e trisal. Mas isso obviamente poderia envolver núcleos de quatro ou mais pessoas. Na sociedade paralela, de modo diverso, tem-se vários núcleos familiares com um elemento em comum. O caso, por exemplo, de um caminhoneiro que, numa semana mora com mulher e dois filhos no Rio de Janeiro, noutra quinzena mora em São Paulo com outra mulher e outros filhos, de modo mais ou menos permanente.
Como visto, ao menos por ora, a questão não tem sido admitida, em nenhuma das modalidades pelos Tribunais do país. Não obstante a questão é muito mais complexa do que parece. Pelo óbvio que a liberdade sexual de pessoas maiores e capazes pode ser exercida de modo livre, dentro de limites que não ofendam a ordem pública (por exemplo, isso não se aplica a pessoas menores de idade, eis que pedofilia seria crime, ou não se admite o tabu do incesto, como se daria no casamento entre irmãos).
Mas parece não haver base constitucional para impedir que pessoas maiores, capazes e que tenham liberdade sexual, não possam viver da forma como entendam correta, se um homem e duas mulheres consentem em viver em harmonia desse modo, não parece haver base para que se entenda que isso seria proibido pelo direito.
Hoje se vive o impasse no sentido de que alguns conseguiram obter certidões de uniões estáveis poliafetivas, providência atualmente proibida por deliberação do Conselho Nacional de Justiça (Pedido de Providências PP 0001459 08.2016.2.00.0000) que recomenda que cartórios e tabelionatos não emitam tais certidões.
Isso porque, ao que parece, a matéria atinente a direito civil, nos termos do artigo 22 e seus incisos do próprio Texto Constitucional seja de competência legislativa da União Federal, convindo que se aguardem providências do Congresso Nacional, no exame da questão – no entanto, embora não se possa admitir tais uniões como uniões formais ante o exposto acima, parece não haver óbice na regulação informal dessas uniões por contratos de união estável que disciplinem as regras, sobretudo a respeito de disposições patrimoniais (por exemplo, regime de bens) tal como apontado linhas acima (não parece haver base técnica para que se negue efeito a contrato que envolve pessoas capazes sobre objetos disponíveis).
E isso valeria, tanto por tanto, para o sistema de sociedades paralelas (presumindo-se, aí, que todos se conheçam e aceitem a situação). Observe-se que essas ponderações são lançadas para as disposições entre conviventes eis que filhos oriundos desses relacionamentos (poliafetividade ou sociedades paralelas não serão atingidos pelo que vier a ser acordado por seus pais em casos de separação ou ruptura da união ou uniões – pelo óbvio que, numa ruptura post mortem o regime jurídico se alteraria, sendo recomendável que se faça um testamento para conferir um mínimo de segurança jurídica em torno da questão – sempre se lembrando que segurança jurídica implica num valor constitucional).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao menos até o momento, não tem aceito a possibilidade de reconhecimento de efeitos jurídicos a sociedades paralelas. Sobre o tema, de se pedir vênia para destacar:
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. REQUISITOS LEGAIS. EQUIPARAÇÃO A CASAMENTO. PRIMAZIA DA MONOGAMIA. RELAÇÕES AFETIVAS DIVERSAS. QUALIFICAÇÃO MÁXIMA DE CONCUBINATO. RECURSO DESPROVIDO. ... 4. Este Tribunal Superior consagrou o entendimento de ser inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas. Assim, se uma relação afetiva de convivência for caracterizada como união estável, as outras concomitantes, quando muito, poderão ser enquadradas como concubinato (ou sociedade de fato). 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag 1130816/MG, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 19/08/2010, DJe 27/08/2010)
Alguns Julgados de Tribunais pátrios, no entanto, partindo da ideia de vedação de enriquecimento sem causa (cláusula geral do artigo 884 CC), bem como da orientação da Súmula nº 380 STF de que restaria possível reconhecer partilha de bens adquiridos pelo esforço comum, em sociedades de fato, referem-se a uma situação de uniões estáveis putativas (quando numa sociedade paralela, um convivente não souber da coexistência da união paralela). Como exemplo:
UNIÃO ESTÁVEL RELACIONAMENTO PARALELO A OUTRO JUDICIALMENTE RECONHECIDO. SOCIEDADE DE FATO. A união estável é entidade familiar e o nosso ordenamento jurídico sujeita-se ao princípio da monogamia, não sendo possível juridicamente reconhecer uniões estáveis paralelas, até por que a própria recorrente reconheceu em outra ação que o varão mantinha com outra mulher uma união estável, que foi judicialmente declarada. Diante disso, o seu relacionamento com o de cujus teve um cunho meramente concubinário, capaz de agasalhar uma sociedade de fato, protegida pela Súmula n° 380 do STF. Essa questão patrimonial esvaziou-se em razão do acordo entabulado entre a autora e a sucessão. Recurso desprovido, por maioria. (Apelação Cível Nº 70001494236, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 20/12/2000).
Em sentido divergente, no entanto, reconhecendo a existência e possibilidade de sociedades paralelas, sem a exigência da boa-fé pela ignorância do estado pelos envolvidos, mas em nome de prelados constitucionais, de se destacar o entendimento do TJBA:
APELAÇÃO CIVEL. DIREITO DE FAMÍLIA.AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. UNIÃO ESTÁVEL SIMULTANEA. PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA AFETIVIDADE. PROVA ROBUSTA. POSSIBILIDADE. 1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável. 2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. 3. Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de procedência do pedido. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (Classe: Apelação,Número do Processo: 0002396-95.2010.8.05.0191, Relator (a): Maurício Kertzman Szporer, Segunda Câmara Cível, Publicado em: 15/04/2015 ) (TJ-BA – APL: 00023969520108050191, Relator: Maurício Kertzman Szporer, Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 15/04/2015
Mais ainda, a questão da socialidade e da solidariedade social pode se fazer sentir em torno de temas como a própria da fidelidade entre cônjuges e companheiros e a possibilidade de obtenção, ou não, por conta dessas situações, e, relembrando, vivemos em tempos de socialidade, uma decorrência da interpretação integrada dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, previstos na Constituição Federal e que permeiam o direito civil contemporâneo. Vai daí que tudo comporta uma função social, e, como aponta Maria Berenice Dias, em cada união familiar, cada um dos membros da família tem uma função.
Aliás, por esse motivo se aponta que, alguns tipos familiares, tome-se o casamento, por exemplo, implique em arranjo familiar que exija expressamente uma comunhão plena de vida (artigo 1.513 CC) e com isso se quer dizer que quem adere ao combo matrimonial, abrirá mão de parcela de sua individualidade em prol do grupo familiar que daí se formará (ideia que pode, aliás, ser aproveitada para outros tipos de união familiar como por exemplo a informal – união estável e a homoafetiva, dentre outras).
Há um papel a ser esperado de cada qual em um ambiente em que os comportamentos dos membros geram expectativas em relação aos demais. Os filhos maiores, enquanto não saem do núcleo familiar para formar os seus próprios, tendem a ajudar nas despesas do lar, os cônjuges/companheiros/parceiros tendem a manter as necessidades da prole, e por aí vai. Não podemos ceder a falsos moralismos, eis que a fidelidade não implica em componente essencial desta equação, não obstante institutos formais e solenes como o casamento imponham o dever de fidelidade (artigo 1.566, inciso I CC).
Ocorre que não obstante se tenha associado pela tradição, o conceito de fidelidade a um tipo de comportamento agregado a comportamentos de cunho sensual, o fato é que a norma não disciplina exatamente o que seria a fidelidade (afinal, o que é ser fiel?).
Como pondero em sala de aula, em direito somente existe uma resposta certa, qual seja “depende”. Matar alguém é crime? Resposta: depende, eis que em legítima defesa não, e por aí vai. Quanto à fidelidade o problema é o mesmo. Ser fiel é não manter relações sexuais com outra pessoa? Resposta: Depende.
Deve-se buscar algo mais amplo que seria a lealdade. Ou seja, pessoas capazes tem liberdade de consentir ou não, em relação às práticas do uns dos outros. Se ambos mantém um relacionamento aberto (prática corrente na atualidade – o assim chamado casamento ou relação eudemônico), ou seja, se ambos concordam e se permitem tal situação, todos sabendo o que se passa, pelo óbvio, por uma questão de boa-fé, não haverá dano moral, não haverá qualquer violação passível de indenização.
Há lealdade, sem fidelidade, na acepção estrita do termo. E salvo o entendimento dos mais conservadores, não haveria qualquer óbice técnico (não obstante exista a família tradicional matrimonial com o dever de fidelidade - o fato é que, se houver violação a esse dever, o máximo que se admitiria em discussão em sede de culpa - muitos autores de peso sequer admitem isso - seria a indenização - mas se há prova de tal regra clara não há margem para indenização – se todos sabem e permitem e se ambos concordam com isso não pode haver margem para a indenização – não haveria ultraje ou sensação de ilusão ou eventuais problemas psicológicos). Negando indenização pelo simples fato de não se admitir a discussão de culpa em direito de família, por exemplo, o seguinte entendimento do TJRJ:
TJ-RJ - RECURSO INOMINADO RI 00041478420128190021 RJ 0004147-84.2012.8.19.0021 (TJ-RJ) Data de publicação: 17/07/2013 Ementa: AUTOS Nº 0004147-84.2012.8.19.0021 Ação de compensação por danos morais. Alegada infidelidade. Imputação de prática de ato ilícito indenizável. Inocorrência. Sentença que se reforma. Alega a autora que foi casada com o réu. Afirma que terminou seu casamento devido à traição pública de seu marido, de modo que vizinhos e amigos tinha conhecimento da infidelidade de seu cônjuge. Por fim, aduz que sofreu grande humilhação em decorrência da conduta do réu. O réu, por sua vez, sustenta que as alegações de infidelidade são infundadas. Defende a inexistência de conduta ilícita e de dano moral a ser compensado. A sentença entendeu que a traição configura violação dos deveres do casamento, razão pela qual há dano moral a ser compensado. Compulsando os autos, entendo que a sentença não merece prosperar. O fim de um casamento, qualquer que seja a causa, gera mágoa, frustração e tristeza. Estes sentimentos serão intensos e profundos e pretensões de cunho indenizatório estão usualmente associadas a tais ressentimentos. Não é por meio da fixação de uma indenização que se dará a cicatrização emocional da profunda mágoa pelo desenlace matrimonial e da reparação a constrangimento e sentimento de tristeza e dor pelo suposto adultério, porque não há reparação econômica possível para curar ressentimentos desta natureza. Ademais, nos dias atuais, não há mais que se falar em culpa para fundamentar a dissolução da sociedade conjugal. De igual forma, embora a traição importe violação dos deveres do casamento, esta decorre da deteriorização da relação conjugal e não é capaz, por si só, de gerar compensação por danos morais à parte ofendida.
Na mesma esteira de raciocínio:
TJ-RJ - APELACAO APL 00125246720098190209 RJ 0012524-67.2009.8.19.0209 (TJ-RJ) Data de publicação: 21/11/2013 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO MORAL. CASAMENTO. INFIDELIDADE. DIVÓRCIO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DE AMBAS AS PARTES. In casu, restou demonstrado que as partes trabalhavam na mesma empresa e que os réus começaram a se relacionar em meados de 2006. Depoimentos testemunhais comprovando que colegas de trabalho dos ora litigantes tiveram conhecimento da situação, mencionando a existência de comentários pejorativos em relação aos fatos. Em que pesem as alegações do autor, entendo que não houve na hipótese violação ao dever de fidelidade. Isso porque, a fidelidade diz respeito à verdade e, na hipótese, não se verifica em nenhum momento que a ré tenha faltado com a verdade; pelo contrário, a narrativa da inicial, bem como a prova dos autos demonstram que a demandada agiu de modo sincero com o seu ex-marido, expressando os seus sentimentos e assumindo a responsabilidade por suas escolhas. O "dever de fidelidade" previsto no Código Civil de 2002 não pode ser interpretado do mesmo modo que era à época da Lei Civilista de 1916. Com a promulgação da CRFB /1988, a dignidade da pessoa humana passou a ser um dos fundamentos da República. Nesse contexto, salientando-se que o Código Civil de 2002 tem como diretriz a boa-fé objetiva e que a Lei Civil deve ser interpretada e aplicada à luz da Lei Maior, não há como entender que a conduta da ré tenha violado o dever de fidelidade. Tal dever vincula-se à verdade, não sendo tolerada pela sociedade atual a hipocrisia, nem as relações baseadas em aparências. No caso, o conjunto probatório demonstra que o casamento das partes estava, de fato, em gravíssima crise. Registro de ocorrência. A CRFB assegura a liberdade, frisando-se que sob o pálio de tal direito encontra-se a liberdade relativa aos sentimentos e à autonomia da pessoa humana, permitindo-lhe tomar decisões e alterar o rumo de sua vida.
Tal aresto, se lido na inteireza o voto do Relator se refere expressamente ao valor “busca da felicidade” – hoje matéria objeto de proposta de Emenda Constitucional (se aprovada tal busca da felicidade poderia se tornar direito social do indivíduo – o que tornaria inconstitucionais tentativas legislativas de se estabelecer danos morais ou seu tabelamento nos casos de infidelidade).
Mas há aqueles que admitem a culpa como elemento passível de gerar indenização por dano moral em casos de infidelidade conjugal – no entanto, não é tão simples obter uma indenização como se possa querer fazer crer. Em primeiro lugar, não se toma a expressão fidelidade no sentido exclusivo de mantença de relações sexuais (há questões, como por exemplo, se reconhece infidelidade virtual, através da troca de mensagens de cunho sexual, sem que tenha havido contato físico e noutros casos, mesmo com a prática do ato sexual não haverá indenização).
Isso porque, se o casal tem regras claras no sentido de que a fidelidade será exigida, haverá margem para indenização. Mas isso porque a regra foi fixada claramente. Mas tudo comporta exegeses. Tentativa legislativa deveria se valer, portanto, da técnica dos conceitos vagos, permitindo que Magistrados analisem questões caso a caso – eis que, insista-se, nem sempre haverá dano moral – a questão não pode ser tratada como se fosse de uma caracterização automática de dano moral – dano in ré ipsa.
Ou seja, quem adere à família formal (matrimônio), em regra, exigirá a fidelidade, eis que a regra em tal tipo de união familiar é essa – ou seja, o dever de fidelidade recíproca. Mas se houver prova inequívoca no sentido de que ambos manteriam relacionamento aberto, pelo óbvio que não haverá indenização. Do contrário se violaria o princípio geral de direito consagrado pelos romanos, com sua peculiar pragmaticidade no sentido de que nemo auditur turpitudinem suans proprians allegans – ou, em tradução literal e livre, a ninguém é dado alegar a própria torpeza em seu favor.
Ou, ainda mais, e como ficaria tal questão no âmbito dos trisais (casais de três existentes até mesmo por força de escrituras públicas registradas – não obstante em 2016 o CNJ tenha recomendado que tais escrituras não sejam mais lavradas até que o Legislativo resolva a questão como explanado acima – fato é que existem várias que foram lavradas). Tratar da questão como sendo de danos in re ipsa seria permitir criação de teratologias e admissão de atos emulativos sob a perspectiva dos atos próprios (atos com abuso de direito, portanto ilícitos pelo comportamento contraditório – ne venire contra factum proprium – nos termos do artigo 187 CC).
Embora seja eu monogâmico convicto, sem qualquer paixão religiosa ou carga moral, mas analisando friamente a questão sob uma perspectiva técnica, e tendo em vista que o Texto Constitucional protege o afeto e não necessariamente a monogamia (não obstante Julgados anteriores do STJ dando conta da monogamia como princípio constitucional implícito já há alguns anos), não me sinto seguro para afirmar que relações não monogâmicas não possam ser protegidas se houver afeto e intenção de se criar famílias de modo não convencional (sociedades paralelas, poliamor e poliafetividade etc.).
Ou seja, quem se dispõe a viver de modo não convencional, sem ofender a qualquer preceito de ordem pública, não poderia depois, de modo a gerar o comportamento contraditório (quis viver assim) buscar uma indenização por danos morais sob a bandeira de uma suposta infidelidade.
Tanto assim o é que somente se tem deferido indenizações por infidelidade conjugal nos casos em que, em primeiro lugar, houve repercussões na esfera moral da vítima (dor, agonia, abalos psíquicos de quaisquer ordens etc – ou seja atingimento daquilo que classicamente se convencionou chamar honra subjetiva) ou se houver repercussão externa que atinja a honra objetiva (por exemplo, o caso da mulher que, no ambiente de trabalho, passou a ser apontada pelos outros que cochichavam enquanto passava).
Não há, assim, um dano moral presumido, ou seja, in ré ipsa. Há casos curiosos, por exemplo, na jurisprudência dos Tribunais pátrios, apontando- se, até mesmo, que não se indeniza dano moral por infidelidade, sem comprovação de intenção de ridicularizar ou expor o outro. Nesse sentido:
TJ-RO - Apelação APL 00185527520108220001 RO 0018552-75.2010.822.0001 (TJ-RO) Data de publicação: 04/11/2015 Ementa: Apelação cível. Infidelidade conjugal. Dano moral. Inocorrência. Infidelidade conjugal não geral dano moral indenizável, especialmente quando não há prova de que o autor teve a intenção de causar lesão ou ridicularizar o cônjuge prejudicado. Ameaça. Arma de fogo. Local público. Dano moral. Caracterização. Quantum indenizatório. Majoração. Ameaçar pessoa com uso de arma de fogo em local público causa dano moral. Cabe ao Tribunal rever o valor da indenização fixada pela instância ordinária quando este se mostrar irrisório ou exorbitante.
Reconhecendo necessidade de comprovação de fatos externos, como uma repercussão pública como dado apto a atingir a honra objetiva do cônjuge ou companheiro:
TJ-ES - Apelação APL 00029635520108080026 (TJ-ES) Data de publicação: 14/10/2015 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL Nº 0002963-55.2010.8.08.0026 APELANTE: ADELSON DE CASTRO APELADOS: VALDINEIA SANTOS FERREIRA e WEDSON DA SILVA RELATOR: DES. SUBST. JÚLIO CÉSAR COSTA DE OLIVEIRA ACÓRDÃO EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – UNIÃO ESTÁVEL - DANO MORAL – SUPOSTA INFIDELIDADE – DEVER DE INDENIZAR – RECURSO IMPROVIDO. 1. Não há dúvidas quanto à incidência das regras de responsabilidade civil nas relações do âmbito familiar, devendo o caso em comento ser analisado à luz do artigo 186 do Código Civil. Assim, para que seja caracterizado o dano moral, e gerado o dever de indenizar, é necessária a comprovação de existência do dano, do nexo de causalidade entre o fato e o dano e da culpa do agente. 2. Com relação ao apontado cúmplice do convivente infiel, não há como se imputar o dever de indenizar, já que ele não possui, legal ou contratualmente, vínculo obrigacional com o convivente supostamente traído, não sendo possível exigir sua responsabilização pelo descumprimento de deveres inerente ao casamento. 3. Ainda que a união estável imponha o dever de fidelidade recíproca e de lealdade, a violação pura e simples de um dever jurídico familiar não é suficiente para caracterizar o direito de indenizar. A prática de adultério, isoladamente, não se mostra suficiente a gerar um dano moral indenizável, sendo necessário que a postura do cônjuge infiel seja ostentada de forma pública, comprometendo a reputação, a imagem e a dignidade do companheiro. 4. Recurso improvido. VISTOS, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Desembargadores que integram a Primeira Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, à unanimidade de votos, NEGAR PROVIMENTO ao recurso. Vitória⁄ES, 06 de outubro de 2015.
Afastando indenização no caso de falta de provas de ofensa sequer de honra subjetiva:
TJ-MG - Apelação Cível AC 10699060652137001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 19/07/2013 Ementa: INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - INFIDELIDADE CONJUGAL - AUSÊNCIA DE PROVA DE OFENSA À HONRA SUBJETIVA - RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA. A alegação de infidelidade conjugal, por si só, sem a prova de ofensa à honra objetiva da vítima, não enseja a condenação em indenização por danos morais, por ausência dos elementos configuradores da responsabilidade civil.
De igual modo, não se poderia fazer um artigo sobre os impactos da Constituição Federal, em seus trinta anos de vigência, sobre o direito privado, sem analisar o tema a respeito da extensão do direito à vida, isso porque muito se tem discutido no país, a questão do aborto, sob a sua perspectiva criminal, inclusive diante de posicionamentos do STF em julgamento do crime de aborto e a partir de ADPF movida por um partido político, observando-se intenção movimentação de grupos de ativistas pró e contra o aborto em audiências públicas.
No entanto, há um exame que me parece simplista, resumindo a questão somente ao âmbito da seara penal, quando em verdade, a questão é muito mais complexa, com vieses que apontam ramificações diretas no âmbito cível, como se pretenderá expor nesta oportunidade.
Não obstante eu tenha opinião formada a respeito do tema, procurarei examinar a questão sob uma perspectiva preferencialmente técnica, destituída de ideologias ou sentimentos pessoais, eis que existem, como apontarei, obstáculos técnicos em torno da questão que a tornam muito mais complexa do que a simplista discussão dos aspectos penais.
Isso porque, como professor de direito de família tenho observado de modo atônito que a discussão, há mais de ano, parece ter como foco central a questão a luz do direito penal e do direito da mulher ao próprio corpo (não o nego, isso é evidente, mulheres tem direito ao próprio corpo, mas, em que medida, o óvulo fecundado não seria outro corpo ?) enquanto que isso tem óbvias implicações no direito civil - aliás, basta ver o Enunciado nº 1 das Jornadas de Direito de Família, para que se constate que já se entende que existe vida desde a concepção (nidação do ovo no útero, como aponta a Professora SIlmara Chinelato). Sobre a questão, observe-se a transcrição literal:
ENUNCIADO Nº 1: A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura.
Disso se extrai, inequivocamente, que os direitos de personalidade se adquirem independentemente do nascimento com vida. Em síntese, o feto já tem direito à vida, na perspectiva civil – do contrário os alimentos gravídicos não seriam possíveis ou haveria necessidade de repetição dos alimentos se o nascituro não viesse ter entrada de ar nos pulmões.
Isso, aliás, explica discussões de biodireito e bioética no sentido de que não se devam descartar embriões excedentários, antes de três anos, a proteção do nome (direito de personalidade) do natimorto (não é mais uma questão de capacidade condicional mas de efetivo direito desde a concepção).
Outro detalhe, se preservamos a vida desde a concepção (hoje vi um comentário em conhecido site jurídico no sentido de que duas células não podem prevalecer sobre bilhões de células - a questão não é essa - essas duas também virarão bilhões), o fato é que o feto não se confunde com o corpo da mulher, é outro corpo - simples assim.
E se todos tem direito ao contraditório efetivo, qualquer procedimento tendente a extirpar a vida latente do nascituro deve pressupor a indicação de um curador ao mesmo - do contrário o procedimento (a CF é clara no sentido de que o contraditório resta como inerente ao processo e ao procedimento administrativo) será inexistente por falta de capacidade postulatória negada ao nascituro - coloco isso para ilustrar como o tema suscita discussões muito mais profundas do que as que estão sendo colocadas, de modo raso, numa discussão criminal. Nessa medida, não criminalizar o aborto no âmbito criminal é permitir-se a supressão de indivíduo dotado de direitos no âmbito do direito privado – direitos materiais e direitos processuais.
Alguns partidos políticos não conseguem maioria para a aprovação de suas pautas no Congresso Nacional – que representa a população e que, se sabe, é majoritariamente contra o aborto. Esses mesmos partidos agora tentam uma reversão no âmbito do Supremo Tribunal Federal analisando a perspectiva puramente criminal, mas existem, repito, implicações e impactos diretos no âmbito do direito civil – vozes, no STF, como a do Ministro Barroso, que foi advogado da tese do aborto dos fetos anencéfalos no julgamento da questão, apontam no sentido de que o Parlamento não deveria decidir tais questões.
No Uruguai, citado com exemplo progressista de algumas correntes, por exemplo, em que se verificou a legitimação do aborto nos primeiros meses de gravidez, a Corte Constitucional se deparou com outra questão cível instigante. Em caso de separação, pode a mãe abortar o nascituro daquele pai, contra a sua vontade ? Isso lá não foi permitido, concedendo-se liminar ao pai.
A conhecida obra Freaknomics (livro que explica em linguagem simples, como fatores econômicos podem ser explicados a partir de fatos que o homem comum não conseguiria relacionar) aponta no sentido de que a permissão do aborto diminui a violência eis que os que tendem a ser violentos, por não serem amados (o que seria uma justificativa sociológica para o aborto), não nasceriam, mas pondero, também para iniciar a discussão:
Com tantas pessoas querendo adotar neste país, com todos os percalços que as mesmas tem que passar para adotar uma criança, não seria mais lógico que se permita que essas crianças venham a nascer e se organize um cadastro para que já sejam encaminhadas a uma família que as queira, desde o primeiro dia ?
Repito, mulheres e homens tem direito ao próprio corpo, mas não tem direito de matar vida que não é órgão de seu corpo. Em última análise, tenho visto analogias no sentido de que se tenha a proteção de filhotes e ovos de animais (tartarugas, por exemplo) por grupos ambientalistas (postura mais do que louvável, diga-se de passagem).
Mas não haveria aí, uma certa desproporcionalidade, tratando-se a vida humana com menos valor do que a vida de uma animal (sabe-se que os animais no moderno direito europeu estão perdendo a natureza de coisas para se constituírem em categoria própria, mas não se permite que tenham precedência sobre a vida humana – haveria séria desproporcionalidade).
Sei que muitas pessoas se submetem a situações indignas buscando realizar abortos clandestinos em clínicas irregulares, mas isso não parece ser justificativa para que se ignore que existam aspectos cíveis da questão e o fato de que o feto não tem culpa alguma pelo comportamento de seus pais - restaria para ele pagar pelos erros de planejamento de seus genitores, o que igualmente não parece despontar como razoável ou proporcional.
Concluindo, nessas três décadas, o texto constitucional impulsionou uma série de releituras de princípios básicos de direito privado, permitindo interpretações que não foram sequer imaginadas no ano de 1988 e que tem sido propaladas pela jurisprudência dos Tribunais pátrios no que tange a um sem número de soluções técnicas que impactam o dia a dia dos jurisdicionados que, de modo positivo, tem imposto ações afirmativas em prol de grupos minoritários como convém a uma democracia participativa.
Muito ainda há que se fazer, mas sem o texto de 1.988, certamente, muito mais ainda haveria que ser feito.
*advogado, magistrado aposentado e professor coordenador nacional do curso de pós graduação em direito civil e processo civil, direito imobiliário e direito contratual da escola superior de direito – esd proordem campinas e da pós graduação em direito médico da vida marketing formação em saúde.