JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA
MAGISTRADO E PROFESSOR DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UNISAL DA UNIFEOB E DA ESAMC/PROORDEM
MESTRE EM PROCESSO CIVIL PELA PUC-CAMPINAS, ESPECIALISTA EM DIREITO PRIVADO PELA USP
1.1 Aspectos Gerais do Procedimento nos Crimes de Alçada do Tribunal do Júri.
Historicamente se tem apontado a Carta Foral conhecida como Magna Charta Libertatum, da Inglaterra de 1.215, como termo inicial, a pedra de toque ou fundamental, de inúmeros princípios processuais de índole constitucional, eis que, pela primeira vez, durante a Idade Média, o poder de um soberano, no caso, João Sem Terras, foi controlado como forma de se conter uma revolta de outros nobres (barões) em estado de insurreição (o que, segundo certa corrente constitucionalista seria um embrião dos fundamental right, embora outro segmento os já vislumbrasse na própria Grécia Antiga).[1]
Tal merece ser dito por que a partir de tal dado histórico se tem reconhecido o direito de um homem a ser julgado por seus pares, o que é o fundamento da idéia de um Tribunal do Júri, enquanto órgão jurisdicional em que cidadãos do povo são convocados para que exerçam função temporária de juízes de direito.
Parte da doutrina, inclusive, estabelece essas origens, em tempos ainda mais remotos, como a centeni comites no direito germânico antigo, de influência romana, o que chegou aos dias atuais por intermédio de Henrique II da Inglaterra, por volta do ano 1.100.[2]
Outros, com inclusive apontado acima, vão ainda mais longe no tempo, no próprio Império Romano e na Grécia Antiga, com as previsões, respectivamente, dos judicis jurati e dos dikastas[3].
No Brasil, o júri surge, pela primeira vez, pela Lei de 18 de junho de 1.822, destinando-se, originariamente, a processar e julgar os crimes de imprensa, sob a égide da denominação “juízo dos Jurados”, e, em 1.824, com o advento da primeira Constituição brasileira, passa a ganhar status constitucional.[4]
Tal condição de garantia constitucional persiste até os dias atuais, em que o Júri continua a ser visto como uma liberdade pública, ou seja, um direito fundamental do indivíduo, por força do disposto na norma contida no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d” da Constituição Federal de 05.10.1.988.
E, nesta condição, por força do previsto no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da mesma Constituição Federal, tal garantia se constitui em verdadeira cláusula pétrea que sequer admite possibilidade de emenda constitucional que lhe venha suprimir.
Com relação ao tema, de se destacar que o texto constitucional pátrio alude á competência do Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, mas, como adverte parte da doutrina, tal competência constitucional não impede que tal órgão jurisdicional venha a julgar outros tipos de delitos conexos com esses crimes dolosos contra a vida, nas hipóteses do artigo 78, inciso I do Código de Processo Penal, nem tampouco impede que a lei amplie as hipóteses de outros delitos que possam vir a ser julgados pelo mesmo órgão, apenas e tão somente impede que crimes dolosos contra a vida não sejam julgados por ele.[5]
Do mesmo modo, outros delitos que envolvam a morte da vítima, como o seqüestro seguido de morte e o latrocínio, por serem definidos como crimes patrimoniais ( o bem jurídico visado pelo agente seria o patrimônio e não a vida da vítima, propriamente dita ), não serão julgados pelo Tribunal do Júri.[6]
Outro dado introdutório interessante, sobretudo quando se analisa o procedimento do Tribunal do Júri, é a constatação de que não só crimes dolosos contra a vida apenados com reclusão, como o homicídio, podem ser processados por este rito, como também alguns apenados com detenção, como é o caso específico do infanticídio e do auto-aborto, mas, seja num caso (apenamento com reclusão), seja no outro (apenamento com detenção), o procedimento a ser empregado ( bi-fásico como se exporá ) será o mesmo.
Tanto assim que doutrinadores tem apontado para o fato de que o procedimento do júri, enquanto juiz natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, pode ser considerado escalonado[7], ou seja, composto de duas fases, a primeira se encerrando com a decisão de pronúncia.
Seguindo, portanto, o objetivo do trabalho proposto, dessas duas fases ( fase sumária, onde o rito a ser empregado é próximo ao do rito ordinário e a fase plenária, perante o órgão colegiado ), apenas e tão somente será analisada a primeira.
1.2 – Procedimento.
Não se pode perder de vista que a noção de procedimento tem a ver com a noção de fase judicial, na medida em que, como sabido, o processo é um instrumento do direito de ação, sendo certo que tal instrumento forma, na sua essência, uma relação jurídica entre o Juiz e as partes, sendo o procedimento um conjunto de atos coordenados pelos quais se desenvolve o processo.[8]
Assim, compreende-se que processo é um instrumento decorrente do exercício da jurisdição, o que faz com que a idéia de um procedimento, sob o ponto de vista técnico esteja ligado a uma idéia de atuação jurisdicional.
Mas, em processo penal, não se pode perder de vista o fato de que as ações penais somente serão iniciadas se houver justa causa para a sua propositura, o que faz supor, na generalidade dos casos, a existência de dados sobre a provável demonstração da materialidade e da autoria delitivas, o que é geralmente obtido em fase extrajudicial, ou seja, na fase da apuração policial do delito.
Costuma-se, em doutrina, inclusive asseverar, em sede de processo penal, que “antes de ser iniciada a fase judicial da persecução criminal, não há instrução e, sim, investigação”[9], tanto que ainda não existe relação processual.
E a atividade policial se iniciará pela notitia criminis chegada à Autoridade Policial e seus agentes, sendo que a primeira poderá formalizar a instauração do inquérito pela portaria ou por requisição do Ministério Público ou do Juiz de Direito, ou, ainda, mediante requerimento da vítima (artigo 5º e seus parágrafos e incisos do Código de Processo Penal), podendo ocorrer, ainda, de início da atividade policial pelo auto de prisão em flagrante (artigos 8º e 301 e seguintes do referido Código de Processo Penal).
Dada a gravidade dos crimes dolosos contra a vida, com penas mínimas e máximas em patamares mais exasperados, muito provavelmente não se iniciará uma ação penal desta natureza, tendo como peça informativa um termo circunstanciado de ocorrência ( nos termos da Lei nº 9.099/95 ), verificado nos chamados crimes de menor potencial ofensivo.
Assim, muito embora, tecnicamente, a fase de inquérito policial não possa ser considerada como integrante do procedimento, que, como dito acima, tem matiz jurisdicional, tais constatações se fizeram necessárias posto que a persecução penal somente poderá ser iniciada, com o recebimento regular de uma denúncia, se o inquérito policial for elaborado com as cautelas legais e se apontar para indícios suficientes da materialidade e da autoria do delito, não ocorrendo, pelo óbvio, as situações descritas no artigo 43 e seus incisos do Código de Processo Penal.
E, com relação ao procedimento jurisdicional, ou seja, encerrada a fase extrajudicial ( a persecução pelo inquérito policial ), o rito a ser empregado, seja o crime doloso contra a vida apenado com reclusão ou com detenção ( como dito acima ), é o procedimento previsto nos artigos 394 a 497 do Código de Processo Penal, o qual, como igualmente dito acima, se divide em duas fases ( juízo escalonado ), sendo a primeira conhecida como fase da formação da culpa, sumário da culpa[10] ou instrução preliminar[11].
Alguns autores referem-se ao judicium accusationis ( sumário da culpa ) e ao judicium causae ( julgamento pelo Tribunal do Júri ou fase plenária ).[12]
Outro dado interessante é o de que, nos crimes dolosos contra a vida, a ação penal é eminentemente de iniciativa pública incondicionada, sendo de atribuição exclusiva do Ministério Público, nos termos do artigo 129 e seus parágrafos da Constituição Federal.
A exceção doutrinária apontada para justificar o início da ação penal por queixa-crime, nos crimes dolosos contra a vida, consiste na situação da ação penal privada subsidiária do ofendido, nos estritos termos do artigo 29 do Código de Processo Penal.[13]
Neste caso peculiar, tem-se entendido que ocorrerá um litisconsórcio ativo, entre o querelante e o Ministério Público, de índole facultativa para o primeiro e obrigatória para o segundo[14], com a especificidade, apontada pela doutrina, de que não se formam duas ações em conexão contra o mesmo réu, e que o querelante poderá abandonar o feito a qualquer tempo, não sendo o mesmo permitido ao órgão ministerial, dizendo-se que o Ministério Público seria um assistente obrigatório, nestas situações, cabendo-lhe assumir, conforme as circunstâncias, a função de parte principal.[15]
Mas, considerando-se que tenha sido encerrado o inquérito policial (em se cuidando de réu preso em flagrante ou por prisão preventiva o prazo de encerramento será de 10 dias, e, estando solto, será de 30 dias, nos termos do artigo 10, caput do Código de Processo Penal), não sendo o caso de arquivamento ( com as cautelas do artigo 28 do Código de Processo Penal ) ou pedido de diligências, será oferecida a denúncia pelo Ministério Público enquanto titular da ação penal ( ou quando possível a queixa, tal como mencionado acima ), o Juiz verificará a possibilidade de seu recebimento sob pena de interposição de recurso em sentido estrito – artigo 581 e seus consectários do Código de Processo Penal.
Para a análise da questão do recebimento, o Juiz estará atento aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, ou seja, atentará para a verificação de que a peça contém a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ( ou, se necessário for, os esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo ), a classificação do crime e o rol de testemunhas.
E como se cuida de um ato judicial, com conteúdo decisório, tal deve ser expressamente fundamentada, como, aliás, estabelece a norma contida no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal.
A questão, no entanto, não é uniforme em sede doutrinária e jurisprudencial, sendo conveniente que se destaque a opinião de Fernado Capez a respeito do tema:
“É certo que o Juiz deverá limitar-se a analisar a existência de ou não de indícios suficientes do fato e sua autoria, sem incursionar pelo mérito, informado pelo princípio in dúbio pro societate, mas não nos parece consentâneo com a nova ordem constitucional ( art. 93, IX ) dispensar toda e qualquer motivação. A jurisprudência, no entanto, ressalvados os crimes falimentares, onde há exigência expressa ( Dec.-Lei n. 7.661/45, art. 109, par. 2° ), tem entendido que a decisão que recebe a denúncia ou queixa não tem carga decisória e, portanto, não precisa ser fundamentada, até porque isso implicaria em antecipação indevida do exame do mérito ( STJ, 6ª T., RHC 4801/GO, DJU. 18 dez. 1.995, p. 44624; 5ª T. RHC 1.000, DJU, 15 abr. 1.991, p. 4307) ...”[16]
Mas, estando presentes indícios suficientes da materialidade e da autoria delitivas, a denúncia provavelmente será recebida, sendo certo que, na sequência, resolvidas diligências pleiteadas, eventualmente, pelo Ministério Público ( busca de folhas e certidões de antecedentes, ofícios a órgãos públicos, etc. ), como facultado pelo artigo 47 do Código de Processo Penal ( embora a lei lhe permita, inclusive, que os requisite diretamente ), o Magistrado deverá determinar a citação do acusado e sua intimação para o interrogatório judicial ( como, ademais, já prevê o artigo 394 do Código de Processo Penal ).
As citações, como sabido, no processo penal, devem obedecer ao disposto nos artigos 351 e seguintes úteis do Código de Processo Penal, devendo-se requisitar réus presos para que sejam apresentados à Autoridade Judiciária competente para o interrogatório ( nunca se podendo esquecer que a citação é formalidade essencial do processo, sendo o ato através do qual se dá conhecimento ao acusado de que contra si corre uma ação penal, dispondo de prazos para se defender ).
A citação, inclusive, tem sido considerada, âmbito do processo penal, como ato de “chamamento do acusado a juízo, vinculando-o ao processo e seus efeitos, pois pela citação válida, completa-se a relação processual e o processo pode desenvolver-se regularmente”.[17]
A maior cautela, no entanto, que se deve observar, diz respeito ao fato de que se deve atentar para a recente alteração legislativa do regime jurídico do interrogatório no processo penal, permitindo ao acusado o acesso prévio a consulta com seu defensor e o direito do patrono de efetuar reperguntas ao seu cliente, o que se aplica, inclusive, no procedimento penal de apuração dos crimes dolosos contra a vida, matéria que se examina no presente trabalho.
Com isso, parece óbvio, tem-se que o legislador pátrio pretendeu conferir maior efetividade ao princípio da ampla defesa, previsto pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal em vigor, posto que sempre se entendeu o interrogatório do acusado como uma peça de auto-defesa[18] (agora integrada e amparada pela defesa técnica).
Inclusive, agora, dentre as perguntas a serem efetuadas ao acusado, se observa a preocupação do legislador ordinário, com a busca do contexto sócio-econômico de que o mesmo é proveniente, o que, inclusive, será útil para o Magistrado na fase de eventual dosimetria da pena, reconhecimento de benefícios, fixação de regime, etc ( como decorre, por exemplo, dos artigos 33, 44, 59, 60 e 77 do Código Penal e 594 do Código de Processo Penal, em que os antecedentes pessoais e sociais do acusado podem ser fatores relevantes para a aplicação da lei ao caso concreto pelo Julgador ).
Se o acusado, citado pessoalmente, não comparecer, ser-lhe-á decretada a revelia, salvo se o fizer por motivo justificado. O mesmo ocorrerá se vier a mudar de endereço, após a citação, sem comunicação ao juízo, nos estritos termos do quanto estabelecido pelo artigo 367 do Código de Processo Penal, aplicável ao procedimento dos crimes dolosos contra a vida.
Do mesmo modo, se a citação ocorrer pela via editalícia, devendo o edital conter os requisitos previstos no artigo 365 e seus incisos do Código de Processo Penal, será de se observar se o acusado comparecerá ou nomeará defensor para o ato, posto que, caso contrário, por força da alteração da redação do artigo 366 do Código de Processo Penal, pela Lei nº 9.271/96, o Juiz deverá suspender o processo e o decurso do lapso prescricional, aguardando a localização do acusado.
Caso surja a necessidade de adoção de providências urgentes, a prova poderá ser colhida antecipadamente, com a presença do Ministério Público e de um defensor dativo indicado pelo juízo ( se estiverem presentes os requisitos legais, ou seja, os arrolados no artigo 312 do Código de Processo Penal, a saber, a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, a garantia de aplicação da lei penal ou a conveniência da instrução criminal, o Juiz poderá decretar a prisão preventiva do acusado ).
Superadas tais ponderações, como a presença advogado do acusado será necessária no interrogatório, provavelmente seu defensor já sairá intimado, nesta oportunidade ( interrogatório ) para a apresentação da defesa prévia ( salvo, por razões óbvias, se ocorrer uma situação anormal, como as destacadas acima, ou seja, por exemplo, revelia de um acusado pessoalmente citado, ocasião em que, como dito acima, haverá necessidade de nomeação de um defensor dativo para tanto ), no prazo de três dias, tal como disposto no artigo 395 do Código de Processo Penal ( a lei se refere a alegações escritas e rol de testemunhas ).
A doutrina esclarece que a intimação para a apresentação de defesa prévia é ato judicial obrigatório, mas a apresentação pelo defensor é facultativa, pelo que, por razões óbvias, não ensejará o reconhecimento de nulidade.[19]
E, deste mesmo interrogatório, sairão o réu, o defensor e o Ministério Público, na pessoa do Promotor de Justiça, intimados para a audiência de início de instrução, na qual serão tomados os depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação ( arroladas no máximo de oito, não se incluindo a vítima, que, no caso dos crimes contra a vida, pelo óbvio, somente será ouvida nos delitos tentados ).
Na seqüência, tomados os depoimentos (se não for o caso de testemunhas residentes fora da Comarca e que deverão ser ouvidas por Carta Precatória, caso não compareçam espontaneamente), resolvendo-se eventuais incidentes típicos desta fase (como, por exemplo, as contraditas e acareações, se necessário for), o Juiz já designará audiência para oitiva das testemunhas de defesa ( igualmente, para preservar o princípio constitucional da isonomia, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, a defesa poderá arrolar até oito testemunhas ).
Encerrada a coleta da prova oral, o Magistrado, após encerrar a instrução, passará à fase das alegações finais, que, ao contrário do que ocorre no rito ordinário dos crimes apenados com reclusão, não se encontra prevista no artigo 500 do Código de Processo Penal, mas, ao contrário, está prevista no artigo 406 do referido diploma processual penal.
Tais alegações serão apresentadas, em primeiro lugar pelo Ministério Público ( se houver assistente de acusação, o mesmo terá igual prazo em relação ao órgão ministerial, mainfestando-se após o mesmo ), e, após, pela defesa, sendo fixado o prazo de cinco dias para tanto, sendo certo que, mesmo que existam vários réus, o prazo será único para tanto, correndo em cartório.[20]
De forma contraditória em relação ao princípio constitucional da ampla defesa ( referido acima ), e como à própria busca da verdade real, o artigo 406 do Código de Processo Penal, em seu parágrafo segundo, proíbe a juntada de documentos novos aos autos.
Mas isso não chega a gerar maiores polêmicas posto que se a parte não pode juntar documentos novos, pode pedir autorização ao Juiz para que os requisite ou determine exibição, já que o artigo 407 do mesmo Código de Processo Penal, permite ao Juiz, após o encerramento da fase do artigo 406 do mesmo diploma, determinar diligências instrutórias necessárias a evitar causas de nulidade ou para o esclarecimento da verdade dos fatos ( a busca da verdade real a que se aduziu acima ), inclusive estando autorizado o Julgador a inquirir testemunhas.
Com isso parece não haver inconstitucionalidade na proibição de juntada de documentos novos, o que pode ser suprido pelo Juiz, em ato seguinte, como destacado acima, o que, ademais, não poderia ser diferente para a garantia do princípio do livre convencimento motivado do Julgador, o que somente pode ser efetivo, se lhe se conferir amplos poderes de instrução.
Se não houver necessidade dessas novas diligências, o Magistrado deverá proferir sua decisão que poderá, ou não, ser considerada uma sentença, de acordo com o que vier a ser decidido nesta fase.
Com efeito, o Magistrado poderá, nesta oportunidade, nos termos dos artigos 408 a 411 do Código de Processo Penal, pronunciar o acusado se estiver convencido da existência de indícios suficientes da materialidade e da autoria delitivas, caso contrário, proferirá decisão de impronúncia, ou, até mesmo, se entender que não se cuida de situação de crime doloso contra a vida, discordando da capitulação contida na denúncia, poderá proceder à desclassificação do delito, o que deslocará a competência do julgamento para a Justiça Comum.
Por fim, nos termos previstos no artigo 411 do Código de Processo Penal, caso o Magistrado entenda que se cuida de situação de exclusão de tipicidade ou de isenção de pena, deverá proceder à absolvição sumária do acusado ( neste caso, a decisão terá natureza jurídica de sentença e não de decisão interlocutória ), devendo tomar a cautela de recorrer de ofício de sua decisão.
Aliás, convém que se destaque que a pronúncia, em sede doutrinária, tem sido entendida como uma “decisão processual de conteúdo declaratório em que o Juiz proclama admissível a acusação”, sendo certo, ainda, que, “na pronúncia, há um mero juízo de prelibação, pelo qual o juiz admite ou rejeita a acusação, sem penetrar no exame do mérito”.[21]
Mas, de se consignar que, nesta fase, se entender pela pronúncia, o Magistrado estará concluindo pela prova da existência do crime e pelos indícios suficientes da autoria, devendo-se compreender, por isso, como assevera Vicente Greco Filho:
“Prova da existência do crime significa convicção de certeza sobre a materialidade, ou seja, exemplificando no homicídio, certeza sobre a ocorrência de morte não natural, provocada por alguém. Indício suficiente da autoria significa a existência de elementos probatórios que convençam da possibilidade razoável de que o réu tenha sido o autor da infração.”[22]
Cuida-se, também de uma decisão interlocutória mista, não terminativa, que apenas encerra a primeira fase do procedimento escalonado a que se aludiu acima, fixando a competência do Tribunal do Júri para o julgamento do feito, por isso que, em sede de pronúncia, não pode o Juiz se alongar no exame do mérito, não sendo recomendável que teça comentários que possam influenciar o ânimo dos jurados[23].
Interessante destacar, ainda sobre o tema, o teor do enunciado da Súmula nº 191 do Superior Tribunal de Justiça, que entende que a decisão de pronúncia interrompe o curso da prescrição punitiva, ainda que venha a ocorrer, posteriormente, desclassificação por parte dos jurados em sede de julgamento plenário.
Caso o Juiz não se convença da presença de tais indícios de autoria, ou não se convença da comprovação da materialidade delitiva, o correto será que prolate uma decisão de impronúncia.
Parte da doutrina aponta a peculiar situação de decisões de despronúncia[24], que ocorrem quando o Juiz pronuncia o acusado, mas, diante de interposição de recurso em sentido estrito pelo defensor do acusado ( artigo 581, inciso IV do Código de Processo Penal ), o Magistrado, em sede de juízo de retratação, se convence do desacerto da decisão anterior, e volta atrás em relação á sua decisão anterior que passará ser de impronúncia.
O mesmo se dá caso o Tribunal venha a acolher o referido recurso em sentido estrito, o qual teve seguimento porque o Magistrado não se retratou, optando pela sustentação da pronúncia[25].
Por outro lado, o fato de haver sido impronunciado, ou despronunciado, como dito acima, o acusado, não implica em dizer que o mesmo se verá livre da acusação, em caráter definitivo, posto que, se por acaso, surgirem novas provas, novo processo poderá ser instaurado contra o mesmo[26] ( pelo óbvio, enquanto não se verificar a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva ).
Caso o Juiz se convença de ocorrência de crime diverso do imputado na denúncia ( ou queixa, conforme o caso destacado acima da ação penal subsidiária do ofendido ), não sendo este crime de competência do Tribunal do Júri ( ou seja, um crime doloso contra a vida ), deverá proceder à desclassificação do acusado, o que implicará, nos termos do artigo 410 do Código de Processo Penal, em necessidade de remessa dos autos ao juízo competente ( no caso, o juízo singular ), com a oportunidade para oitiva de testemunhas, adoção das providências do artigo 499 do Código de Processo Penal, etc.
Se o Juiz se convencer de ocorrência de outro crime, não imputado na denúncia, mas que ainda seja de competência do Tribunal do Júri, deverá proceder à mutatio libeli, a que alude a norma contida no artigo 384 do Código de Processo Penal, para que não se viole o princípio da ampla defesa, constitucionalmente assegurado, como destacado acima.[27]
Isso, pelo óbvio, se ocorrer situação que implique em alteração da descrição do fato imputado na denúncia, mas não na hipótese mais simples, de situação de mera discordância da capitulação do fato narrado na denúncia, quando, então, o Magistrado poderá, sem necessidade de alteração da peça exordial acusatória, aplicar o disposto no artigo 383 do mesmo Código de Processo Penal.[28]
Nesta fase, diga-se, de passagem, costuma-se analisar elementos evidenciadores, ou não, da intenção do agente, às mais das vezes demonstrados por atos praticados pelo autor do delito.
Com efeito, nesta direção apontam as decisões dos Tribunais pátrios, demonstrando alguns atos exteriores, como evidenciadores da intenção homicida:
"Constituem início de execução, reveladores da intenção do réu, os atos objetivos de usar arma de poder mortífero para alcançar parte letal do corpo da vítima." TAMG, Rel. Des. Hélio Costa,RF 205/247.
E, ainda:
"Um disparo de arma de fogo na direção de uma pessoa, não significa, só por só, tentativa de homicídio. para reconhecê-la, é mister que se verifique a ocorrência de uma série de sinais objetivos de identificação anteriores, coetâneos e posteriores à própria ação ofensiva. A existência de precedente ameaça, ou de ressentimento entre o agente e a vítima, o meio vulnerante empregado, a região afetada pela agressão,as palavras ou atitudes do autor diante do resultado produzido, tudo isso deve ser observado, medido e avaliado....." TJSP, Rel. Silva Franco, RT 525/345.
Na desclassificação, portanto, o que se tem é uma manifestação judicial no sentido de que o Tribunal do Júri não será considerado o Juiz Natural da apuração do fato, posto que o Juiz não se convenceu da ocorrência de um crime doloso contra a vida.
Por último, ainda, nesta fase, tem-se a possibilidade do Magistrado se convencer da ocorrência de situação excludente da ilicitude ( e o Código de Processo Penal, promulgado em 1.941, portanto antes da Reforma da Parte Geral do Código Penal, verificada em 1.984, faz referência no artigo 411 aos artigos da Parte Geral revogada ) ou de isenção de pena, o que o levará a proferir uma decisão de absolvição sumária.
Como, ao contrário da pronúncia ou da desclassificação, não se cuida de uma decisão fixando competência do Julgador para o fato, mas se cuida de uma decisão absolutória, a mesma tem natureza jurídica de sentença proferida pelo juízo monocrático, fazendo coisa julgada material.[29]
Em sede de absolvição sumária, o Juiz fica adstrito ao princípio in dúbio pro societate, de modo que as situações excludentes de ilicitude e de isenção de pena ( situações de inimputabilidade ), devem restar evidentes, patentes, de modo que, se houver dúvida, deve-se pronunciar o acusado para que o Tribunal do Júri, juiz natural constitucionalmente estabelecido, como demonstrado acima, decida a questão.
Neste sentido, a opinião de Fernando da Costa Tourinho Filho, para quem, dizendo muito em pouco, confirma essa peculiaridade, no que tange à absolvição sumária:
"Pode também o Juiz proferir sentença absolutória, nos termos do artigo 411 CPP. Entendendo que o ato praticado pelo réu não foi antijurídico ou ausente de culpabilidade, pode absolvê-lo sumariamente, desde que, no particular, as provas sejam estremes de dúvida..............Se o Tribunal do Júri julga os crimes dolosos contra a vida, depois que o Juiz togado julga procedente o "jus accusationis", e como não pode dizer que procede o direito de acusar, se, o ato foi praticado, digamos, em legítima defesa, é intuitivo possa haver a absolvição sumária, desde que não haja nenhuma dúvida sobre a existência da excludente de antijuridicidade.” [30]
Além do entendimento doutrinário a respeito, já retro-mencionado, também vem a jurisprudência majoritária dos Tribunais pátrios cristalizando a tese da não aplicação do brocardo latino "in dubio pro reo" nos casos da absolvição sumária disciplinada no artigo 411 do Código de Processo Penal.
Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
" A absolvição sumária do artigo 411 CPP só tem lugar quando a excludente da culpabilidade desponte nítida, clara, de forma irretorquível, da prova dos autos. Mínima que seja a hesitação da prova a respeito, impõem-se a pronúncia para que a causa seja submetida ao Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, por força de mandamento constitucional." RT 656/279
Ainda neste sentido, v.g., STF, RTJ 63/833; 61/344; TJSP, RT 503/328; 514/348;564/326 e 655/275, dentre inúmeras outras.
A cautela que se deve ter, nessa situação, de absolvição sumária, é atentar para a necessidade de interposição de recurso de ofício pelo Magistrado, sendo certo que, neste caso, se verifica, além da possibilidade do chamado recurso oficial ( artigo 574, inciso II do Código de Processo Penal ), será possível a interposição de recurso em sentido estrito ( artigo 581, inciso VI do mesmo diploma legal ), de modo que, em tese, tem-se como possível que o Juiz, em sede de retratação, volte atrás na sua decisão de absolvição sumária, em exceção à regra de que somente caberia o recurso de apelação em face de sentenças absolutórias definitivas ( artigo 593, inciso I do Código de Processo Penal ).[31]
Essas as principais considerações encontradas na pesquisa encetada, em respeito aos atos componentes da fase de instrução preliminar do procedimento de apuração dos crimes dolosos contra a vida.
Consigna-se, por fim, que, com a prolação da decisão de pronúncia, com as cautelas destacadas acima, não havendo interposição de recurso, ou se houver interposição, se não houver conhecimento ou provimento recursal estaria encerrada esta fase processual, restando, agora, o início da segunda fase do procedimento escalonado, a se verificar com a apresentação do libelo-crime acusatório, pelo Promotor de Justiça, em relação ao que, no entanto, para que não se extrapole o âmbito do presente trabalho, não serão tecidos outros comentários.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição.
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Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003.
[1] Canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2.002, 5ª edição, p. 1.386.
[2] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 358.
[3] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 625.
[4] Marques, José Frederico. A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1.997, p. 37.
[5] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 624.
[6] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 359.
[7] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 618.
[8] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 345.
[9] Marques, José Frederico. A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1.997, p. 354.
[10] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 358.
[11] Marques, José Frederico. A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1.997, p. 348.
[12] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 547.
[13] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 618.
[14] Massari Eduardo, Il processo penale, apud, Marques, José Frederico. A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1.997, p. 342.
[15] Marques, José Frederico. A Instituição do Júri. Campinas: Bookseller, 1.997, p. 342
[16] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 131.
[17] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 257.
[18] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 496.
[19] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 548.
[20] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 548.
[21] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 548.
[22] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 360.
[23] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 549.
[24] Greco Filho, Vicente. Op. Cit., p. 361.
[25] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 554.
[26] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 619.
[27] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 549.
[28] Capez, Fernando. Op. Cit., p. 550.
[29] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 554.
[30] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal, Bauru: Jalovi, 13ª edição, 1989, p. 145-146.
[31] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 556.