O ENRIQUECIMENTO ILÍCITO E O PRINCÍPIO DA SAISINE NA UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DE IMÓVEL DA HERANÇA POR HERDEIRO

Conteúdo do Artigo: 

JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA

JUIZ DE DIREITO, MESTRE EM PROCESSO CIVIL PELA PUCCAMP, ESPECIALISTA EM DIREITO PRIVADO E PROCESSO CIVIL PELA FADUSP

 

FLÁVIO AUGUSTO MARETTI SIQUEIRA

ADVOGADO, MESTRANDO EM DIREITO PENAL NA UEM; ESPECIALISTA EM DIREITO E PROCESSO PENAL PELA UEL.

 

I.) INTRODUÇÃO; II.) PRINCÍPIO DA SAISINE; III.) ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA; IV.) ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E DIREITO SUCESSÓRIO V.) CONCLUSÕES; VI.) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

I.) INTRODUÇÃO:

 

                        O presente artigo pretende realizar uma sucinta abordagem acerca da questão do enriquecimento sem causa em contraponto com a divisão dos valores a serem pagos a cada um dos herdeiros quando da distribuição dos frutos decorrentes da cessão a terceiros da posse do bem ou exploração exclusiva por parte do herdeiro (o que, num primeiro momento, parece, mesmo, ter alguns reflexos a respeito do princípio da saisine, correntemente aceito no direito pátrio), mormente após o advento da nova orientação conferida pelo E. Superior Tribunal de Justiça a esta matéria, por uma de suas Turmas.

 

E, ainda mais, com a devida licença, o que se busca é uma verificação da situação da eticidade deste novo entendimento conferido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, à questão (eis que de acordo com o novo Código Civil, tal princípio sempre deverá nortear as relações intersubjetivas), com a pragmaticidade que lhe é peculiar, sempre acompanhando a vanguarda evolutiva do ordenamento jurídico pátrio, com já se demonstrou através de inúmeros precedentes anteriores, a respeito dos mais diversos ramos do Direito[1].

 

 

II.) PRINCÍPIO DA SAISINE:

 

O Código Civil considera a herança bem imóvel para efeitos legais, ou seja, a lei cria uma espécie de vinculação de todos os bens em torno de si para proteger o eventual interesse de incapazes em razão do não fracionamento dos quinhões; buscando evitar, assim, uma alienação esparsa dos bens e que se esvazie o conteúdo global do patrimônio do extinto (de cujus sucessiones agitur), que, ao fim, possa desequilibrar a divisão dos quinhões hereditários (artigo 80, II, CC), ou seja, o intuito visado pelo legislador pátrio (ou fim social a que a lei se destina, para guardar fidelidade com os termos e orientações lançados, pela norma contida no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, parecem ter se orientado nesse sentido – qual seja, uma busca eudaimônica pelo equilíbrio proporcional entre cotas).           

 

                        E, ainda mais, a abertura da sucessão como é sabido opera-se com a morte do proprietário dos bens (artigo 1788, CC), o qual encerra o liame entre a pessoa e seus bens (até porque, com o fim da vida, cessa a personalidade jurídica do extinto, restando a necessidade de se regularizar a titularidade deste patrimônio, enquanto conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, que necessita de ter um novo titular). 

 

                        A regra pelos quais os bens do falecido transferem-se, de imediato, com sua morte aos seus herdeiros[2], legítimos ou testamentários (artigo 1784, CC), é dado o nome de princípio de saisine, a qual, aliás, mantém uma certa tradição secular, no direito pátrio, eis que tal princípio já se encontrava inserido no Código Civil de 1.916, o chamado Código Bevilácqua, não se escondendo ser esta uma influência do conhecido Código Napoleônico de 1.804 (como igualmente sabido, Clóvis Bevilácqua se inspirou no direito civil francês, de índole liberal, numa ideologia de laissez faire laissez passet, como igualmente abeberrou-se no Código Civil Alemão, BGB, ao redigir o antigo Código Civil pátrio, vigente por quase noventa anos, na cultura jurídica nacional).

 

                        Silvio de Salvo Venosa, em valiosa lição, acaba por explicar o referido princípio estabelecendo que o mesmo seria: “o direito que têm os herdeiros de entrar na posse dos bens que constituem a herança”[3].

 

A partir da abertura, como ingressaram na posse e propriedade dos bens do espólio, por tal artifício jurídico, os herdeiros passam a exercer em regime de condomínio (situação jurídica que tende a ser transitória, como assevera copiosa doutrina) a qualidade de proprietários da totalidade do ativo, vez que não há partilha e distribuição dos quinhões a cada um dos herdeiros (artigo 1791, CC) e com ela já surge o direito a usar os meios jurídicos cabíveis para a tutela do patrimônio, os quais não se limitam apenas aos interditos possessórios.

 

Outro aspecto importante é que tal transmissão é automática, independentemente de manifestação da parte, a qual deve se manifestar na hipótese de recusa (artigo 1806, CC), de sorte tal que o inventário acabaria não sendo translativo da propriedade (essa já se transferiu pela saisine, como asseverado linhas atrás), mas, ao contrário, seria um instrumento (muitas vezes com caráter de jurisdição voluntária – quando todos os herdeiros são maiores e capazes, sendo representados por um mesmo patrono – restando uma lide meramente potencial, quiçá pela potencialidade de exceção fazendária no que pertine aos recolhimentos tributários e pedidos de alvará – nos estritos termos da norma contida no artigo 1.031 do Código de Processo Civil em exegese com o artigo 192 do Código Tributário Nacional) de regulação jurisdicional dessa transformação da titularidade dos bens.

 

 

III.) ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA:

 

                        A preservação dos negócios jurídicos dentro de níveis de normalidade, probidade, boa fé e eticidade são os objetivos da teoria das nulidades, pois se visa aproveitar ao máximo os enlaces jurídico-sociais e preservar também a celeridade na circulação das riquezas com um mínimo de certeza (e tal questão não deixa de comportar relevante importância estratégica, num mundo globalizado, como aquele em que vivemos, eis que, como sabido, um dos dados que influenciam no chamado “Risco-País”[4]).

 

                        Inicialmente, quando da vigência do CC/16 (o conhecido Código Bevilácqua) não havia uma previsão expressa de vedação do enriquecimento sem causa (conhecido como locupletamento ilícito), donde a sua utilização acabava implicando em conseqüência interpretativa dentro do estabelecido pela LICC (artigo 5º) com referências ao fim social a que a lei se destinava (a mens legislationes, ou, como queiram, a mens legis) e da eqüidade na interpretação e aplicação das leis, além de sua utilização dentro do espectro da análise do comportamento das partes e cominação de eventual ilícito como perdas e danos.

 

No entanto, mesmo não havendo previsão normativa expressa, mas um permissivo implícito pela exegese da proporcionalidade (a busca por negócios sinalagmáticos), a doutrina e jurisprudência sempre tenderam a se orientar no sentido de vedar o chamado locupletamento indevido (o que, ademais, não deixava de ser uma decorrência de princípios gerais de direito, mormente fundados na noção de equitatividade, tal como autorizado pela norma contida no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, no que concerne à integração das pseudo-lacunas do ordenamento normativo).

 

                        Assim, sem que isso pudesse ser tido como novidade, o enriquecimento sem causa passou a ser previsto, de forma expressa, dentro do ordenamento atual para dar tons vivos aos princípios fundantes de sociabilidade, eticidade e operabilidade, todos erigidos quando da elaboração do Projeto Reale que culminou na Lei 10.406/02.

                       

                        Em especial, tem-se que este instituto foi criado para que houvesse efetivo instrumento material apto a coibir o emprego de ardis no entabulamento dos negócios jurídicos, de modo a proteger os valores da boa-fé e da segurança jurídica, objetivando sempre preservar o equilíbrio nas relações privadas[5] e, assim assegurando a reparação ampla do dano causado (artigos 884 e 885, CC).

 

E mesmo que o legislador pátrio não tivesse sido enfático a esse respeito, estabelecendo norma expressa a respeito da vedação de tal locupletamento ilícito no sistema obrigacional, ainda assim, remanesceriam os princípios gerais de direito e opiniões doutrinárias então prevalecentes, como apontado linhas atrás, e, ainda mais, haveria a própria disciplina do chamado princípio da boa-fé objetiva (já aplicável às relações de consumo disciplinadas pela Lei nº 8.078/90), a que alude a norma contida no artigo 422 do Código Civil.

 

Inequívoco, portanto, na acepção estrita de que não seria possível outro sentido, que o atual sistema jurídico de Direito Civil veda situações geradoras do chamado enriquecimento sem causa, nas relações intersubjetivas.

 

                        Silvio de Salvo Venosa, inclusive, na obra mencionada acima, a respeito de tal tema, pondera no sentido de que:

...existe enriquecimento injusto sempre que houver uma vantagem de cunho econômico em detrimento de outrem, sem que haja justa causa. A actio in rem verso objetiva tão-só reequilibrar dois patrimônios, desequilibrados sem fundamento jurídico. A relação de imediatidade, o liame entre enriquecimento e o empobrecimento fechará o circulo dos requisitos para a ação específica. Deve ser entendido como sem causa o ato jurídico desprovido de razão albergada pela ordem jurídica. A causa poderá existir, mas, sendo injusta estará configurado o locupletamento indevido. O enriquecimento pode emanar tanto de ato jurídico, como de negócio jurídico, e também como ato de terceiro”[6].

 

IV.) ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E DIREITO SUCESSÓRIO:

 

                        Vencidas as noções introdutórias de se avançar rumo ao cerne do artigo que se trata de uma matéria decidida recentemente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, a qual trata do termo inicial para cômputo da distribuição dos frutos dos bens da herança que será marcado ou desde a data do falecimento ou após mediante notificação extrajudicial advinda dos demais herdeiros.

                        O consagrado Areópago ao decidir a questão o fez mediante análise no Recurso Especial, cujo aresto se traz à cognição:

 

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. COBRANÇA DE ALUGUEL. HERDEIROS. UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DO IMÓVEL. OPOSIÇÃO NECESSÁRIA. TERMO INICIAL.

 

- Aquele que ocupa exclusivamente imóvel deixado pelo falecido deverá pagar aos demais herdeiros valores a título de aluguel proporcional, quando demonstrada oposição à sua ocupação exclusiva.

- Nesta hipótese, o termo inicial para o pagamento dos valores deve coincidir com a efetiva oposição, judicial ou extrajudicial, dos demais herdeiros.

Recurso especial parcialmente conhecido e provido[7].

 

                        Malgrado ter sido o entendimento vitorioso em apertada votação num primeiro momento, seria de se entender que essa não teria sido a melhor orientação jurídica, sendo nosso entendimento no sentido dos votos vencidos dos Ministros Ari Pargendler e Humberto Gomes de Barros, sempre sob uma ótica de vedação do referido enriquecimento sem causa.

 

                        Isso porque o termo inicial para que o herdeiro tenha que fazer o repasse das verbas recebidas que decorrem dos frutos da exploração dos bens então comuns, há de ser o instante da celebração de contrato de aluguel entre o herdeiro isoladamente que representa os demais ou o início da efetiva exploração, nunca dependendo de interpelação (sob pena, mesmo, de caracterização de ilícito penal, nos estritos termos da norma contida no artigo 156 do Código Penal, desde que, obviamente, não se cuide de situação de imunidade penal nos termos do artigo 181 do mesmo estatuto repressivo).

 

                        Com a celebração do negócio jurídico há o início da percepção de frutos por parte de um herdeiro, sendo certo que esses valores devem ser agregados junto à herança para formar um todo, um bem imóvel (artigo 80, II, CC) e, após, com a colação e o pagamento do ITCMD se verifique a regular distribuição dentro dos quinhões hereditários.

 

                        A percepção isolada dos frutos por um herdeiro e a fixação do marco inicial, como o da notificação extrajudicial, gera uma situação que conduz forçosamente ao reconhecimento de enriquecimento sem causa do herdeiro, pois se a herança ainda não foi dividida, há um único bem imóvel, em regime de condomínio, assim a sorte do bem deve ser decidida por todos os herdeiros e os eventuais frutos percebidos devem ser divididos entre todos eles (artigos 1791, § único e 2020, CC).

 

                        Sob a perspectiva da relação de co-propriedade tem-se que a admissão de tal fracionamento do dever de repassar os frutos do bem ao montemór quebranta a natureza jurídica da relação entre herdeiros, de ser um condomínio pro indiviso, passando a ser pro diviso com uma condição resolutiva no intercurso (artigo 121, CC), donde a obtenção exclusiva dos frutos ficaria em prol do herdeiro beneficiário até que haja a sobrevinda da notificação extrajudicial que poria fim a exclusividade na fruição. 

 

                        A vontade do herdeiro superaria o espírito da lei quando optou pelo início da sucessão, ou seja, a morte do herdeiro e o fim da comunhão com a partilha dos bens (artigo 2023, CC).

 

                        Assim, os demais herdeiros que foram, pela lei, contemplados com o patrimônio do de cujus, desde a data de seu óbito, são obrigados a ver a cisão entre o momento do falecimento e o da notificação extrajudicial, com um herdeiro isoladamente aferindo os alugueis, para depois ocorrer a divisão dos quinhões.

 

A hipótese de tal ato, não deixa de gerar um certo enriquecimento sem causa, a uma porque não é obrigado a trazer tal bem a colação, pois não se trata de doação ou antecipação da legítima (artigo 2002, CC) e a duas por estar dispensado das penas da sonegação (artigo 1992, CC), pois os herdeiros conheciam a situação e de boa-fé (artigo 113, CC) permitiram a obtenção dos frutos na certeza da futura divisão, desde a data da morte (e isso não deixaria de romper com orientações já cristalizadas do Superior Tribunal de Justiça, como, verbi gratia, aquelas contidas nas súmulas nº 43 e 54, que, nitidamente, combatem orientações geradores de tal locupletamento ilícito).

 

Nesses exatos termos alhures pode-se, aliás, extrair referido conteúdo ao se analisar o voto do Ministro Ari Pargendler ao decidir, no sentido de que:

Aberta a sucessão, domínio e posse transmitem-se aos herdeiros (CC, art. 1.572). A herança é recebida em estado de comunhão pro indiviso, o qual pode, ou não, terminar com a partilha: a) deixa de existir se o patrimônio puder ser dividido entre os herdeiros, cada qual passando a ser proprietário de um ou mais bens; b) subsiste, seja porque não houve a divisão do patrimônio, seja porque este é indivisível – mas muda de natureza, porque passa a ser um estado de comunhão inter vivos, não mais um estado de comunhão hereditária. “O fim da partilha” – ensina Pontes de Miranda – “é tirar todo caráter hereditário da comunhão. A lei tem essa comunhão como transitória, e breve; por isso mesmo, impôs prazos para a abertura e para o encerramento do inventário” (Tratado de Direito Privado, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1971, 3ª edição, Tomo LX, p. 223). Quid, se a partilha tarda, estando um dos herdeiros na posse e gozo de imóvel sob comunhão hereditária ? Salvo melhor juízo, a resposta depende de saber, primeiro, se o imóvel cabe, ou não, no quinhão do possuidor e, segundo, se ele tem preferência na respectiva partilha. Na espécie, o quinhão hereditário cabe no quantum que deve ser partilhado ao possuidor, e ele tem preferência na adjudicação, tal qual deflui, a contrario sensu, do art. 1.777 do Código Civil e da elaboração doutrinária, in verbis: “A comodidade dos herdeiros há de ser atendida. Os exemplos mais freqüentes são os de vizinhança de prédios

herdados e prédios já de propriedade do herdeiro, os de situação do edifício ou apartamento em lugar em que reside ou tem negócios o herdeiro...“ (Pontes de Miranda, op. cit. p. 249). Se o imóvel cabe no quinhão hereditário e o possuidor tem preferência na partilha, não está obrigado a transferir para o espólio os frutos atuais ou potenciais do bem, nem pode lançar os respectivos encargos à conta da herança (v.g., despesas condominiais, taxas e impostos); se prevalecesse a solução adotada nas instâncias ordinárias, ter-se-ia o resultado insólito de o proprietário pagar aluguel. O desate da lide, evidentemente, seria outro se o quinhão hereditário fosse menor do que o bem ocupado pelo herdeiro, porque este teria então de carrear ao espólio os respectivos frutos, sob pena de enriquecimento sem causa.

 

                        No mesmo sentido confiram-se os acórdãos abaixo mencionados:

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO VISANDO À DECLARAÇÃO DO DIREITO A PERCEPÇÃO DE FRUTOS DO IMÓVEL, LOCALIZADO EM JACAREPAGUÁ E AO PAGAMENTO DE TAXA DE OCUPAÇÃO, EM RAZÃO DO USO EXCLUSIVO DA PROPRIEDADE COMUM, DECORRENTE, NO CASO, DE HERANÇA AINDA NÃO PARTILHADA

 

SENTENÇA QUE REJEITANDO A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA, JULGANDO PROCEDENTE EM PARTE O PEDIDO FORMULADO PELAS AUTORAS NA INICIAL, PARA CONDENAR OS RÉUS AO PAGAMENTO DO VALOR REFERENTE À TAXA DE OCUPAÇÃO PELA UTILIZAÇÃO DA PROPRIEDADE, DE ACORDO COM O VALOR A SER APURADO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA POR ARBITRAMENTO. CABE DESTACAR QUE A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE DOS BENS CAUSA MORTIS ATENDE AO DROIT DE SAISINE, SENDO INSTAURADO CONDOMÍNIO SOBRE A HERANÇA DIANTE DA IMEDIATA TRANSMISSÃO DA POSSE E DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. RECURSO CONHECIDO PARA DAR PARCIAL PROVIMENTO PARA QUE O PAGAMENTO REFERENTE À TAXA DE OCUPAÇÃO DO IMÓVEL SEJA EFETUADO EM FAVOR DO ESPÓLIO DE SÉRGIO MATTOSO DE BRITO, DESDE O FALECIMENTO[8].

 

ESPOLIO CONDOMINIO TAXA DE OCUPACAO FIXACAO DO VALOR CORRECAO MONETARIA BENS DE ESPÓLIO. UTILIZAÇÃO POR ALGUNS DOS CONDÔMINOS. DIREITO DOS DEMAIS AO RECEBIMENTO PERCENTUAL DO VALOR DA TAXA DE OCUPAÇÃO.

 

Estando o bem do espólio na posse de alguns herdeiros, os demais têm direito ao pagamento mensal de metade da taxa de ocupação. Não se leva em consideração as casas construídas pelos herdeiros, após os óbitos dos autores da herança. A correção monetária deve ser contada só a partir da data do laudo que fixou o valor. Recurso parcialmente provido[9].

 

IMOVEL EM CONDOMINIO CO-PROPRIEDADE RESPONSABILIDADE PELO USO INDEVIDO ALEGACAO NAO PROVADA COBRANCA INDEVIDA APELAÇAO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DE UM CONDÔMINO EM PREJUÍZO DOS DEMAIS. AUSÊNCIA DE PROVA.

 

Demonstrado nos autos que o condômino não se utiliza com exclusividade dos imóveis dos quais é co-proprietário, que não estão alugados e nem mesmo têm condições de habitabilidade, a cobrança de parte dos locativos ou de renda presumível constitui, enriquecimento indevido, mormente quando anteriormente foi pactuada a venda dos bens para inclusão no monte da herança. RECURSO IMPROVIDO[10].

 

                        Acredita-se, portanto, modestamente, que a solução adequada ao caso vertente seria, no sentido de ter o herdeiro de trazer para os autos os valores obtidos, por exemplo, por ter celebrado o contrato de aluguel nos termos da facti specie contida no artigo 2020, CC para que houvesse de repartir os valores em questão, ou, noutro passo, admitir-se a ação para ressarcimento fundada em enriquecimento sem causa, caso a partilha já tivesse se findado no período de três anos (artigo 206, § 3º, IV, CC), ou caso entendesse melhor, o interessado poderia anular a partilha amparado no artigo 2027, sob o argumento de que houve dolo (artigo 145, CC), e, assim por diante.

 

                    No entanto, como se exporá, linhas adiante, na conclusão do presente singelo artigo, com a ótica do Magistrado que administra um Ofício Judicial, se compreende o escopo preconizado pela nova orientação, a qual não deixa de trazer, em torno de si, uma preocupação com a questão da efetividade e a própria tempestividade (artigo 5º, LXXVIII, CR, com a redação que lhe foi conferida pelo advento da EC nº 45/04 – a conhecida “Reforma do Poder Judiciário”) da jurisdição estatal.

 

 

 

 

V.) CONCLUSÕES:

 

                        Em primeiro lugar, existe a premente necessidade de ter em foco, ao se analisar uma questão deste jaez que se está lidando, provavelmente, com valores outros, além dos meramente pecuniários, posto que em voga, verbi gratia, a própria estabilidade da família que configura a base da sociedade para o Estado (nos estritos termos, aliás, preconizados pela norma contida no artigo 226, CR), vez que, como sabido, ressalvada algumas hipóteses da sucessão testamentária, em que terceiros estranhos às relações familiares acabam sendo contemplados, o que se tem, na maioria dos casos (já que no Brasil a maior parte da população não tem o hábito de deixar disposições de última vontade, formalizadas em instrumentos próprios), o que se observa é uma sucessão a título universal, que, como é cediço, acaba por implicar em beneficiar com a herança os parentes mais próximos do extinto (o de cujus sucessiones agitur a que se referia o Digesto Justianeu, no direito quiritário romano – jus quiritum, em orientação que se seguiu no jus gentium, chegando a vários ordenamentos jurídicos da Europa Continental, o conhecido sistema da Civil Law, contraposto ao da Common Law, servindo de Ordenações do Reino de Portugal, e, em certa medida, mesmo, o Código Napoleônico de 1.804 e o BGB alemão de 1.896, inspiração do direito civil pátrio).

 

                        Outro aspecto que merece ser tangenciado é que a ausência da partilha dos valores pode ensejar vários problemas de manutenção da estrutura familiar, mas, para além desse flanco, vislumbrando-se o quebrantamento da igualdade dos quinhões e o desrespeito ao direito à herança tracejado no artigo 5º, CR (mormente numa visão isonômica que se pretende conferir ao princípio da igualdade), tornando a partilha eivada por vício de consentimento e também por inconstitucionalidade, vez que negou parcela do direito à sucessão.

 

                        O Direito tutela o equilíbrio entre as frações hereditárias, pois visa resguardar o interesse de todos os herdeiros dentro da partilha, e, como destacado linhas atrás, como o ordenamento jurídico pátrio, por séculos, inspirou-se em sede do direito romano Justianeu, os operadores do direito nacional acabaram por ter como dogma a orientação de Paulus, no referido Digesto, no sentido de se pensar a respeito da noção de que se o direito se funda em três premissas básicas, a saber: honeste vivere, non laedere alter et suum cuique tribuere[11], o que, numa tradução literal implica a idéia de se viver honestamente, não lesar os outros e dar a cada um o que é seu.

 

                        Assim, como a sucessão é deflagrada com a morte, nada mais justo que os frutos da exploração do bem pelo herdeiro exclusivo tenham como marco (ou melhor dizendo, como termo inicial) para distribuição dos quinhões o mesmo lapso descrito acima, sob pena de, por exemplo, se permitir a exploração exclusiva de um herdeiro em detrimento dos demais, quiçá, de boa-fé, mesmo em situação de desconhecimento do óbito havido.

 

No entanto, não se pode deixar de consignar que, nessas condições, a decisão do E. Superior Tribunal de Justiça não deixa de revelar aspectos de eticidade e pragmaticidade, tal como ponderado no final do item anterior, deste singelo artigo.

 

Isso porque, com tal nova orientação jurisprudencial, não se está a privilegiar uma ética de índole eudaimônica (idílica) baseada numa nobreza de caráter ou arete, como preconizada na Grécia Clássica, partindo-se do pressuposto de que todos os homens são bons e voluntariamente tenderiam a cumprir as normas jurídicas em virtude da estabilidade de um pacto social suposto.

 

Mas, ao contrário, a decisão em comento não deixa de ser ética sob um prisma utilitarista, visando um bem maior (a conhecida versão maquiavélica, em sentido político e não vulgar, que implica na idéia de que os fins não deixam de justificar certos meios), qual seja, o de conferir maior celeridade ao sistema, restaurando outro pragmático principio jurídico, decorrente do jus quiritum romano, qual seja, aquele de acordo com o qual dormientibus non sucurrit jus, o qual, em tradução literal, implica a idéia de acordo com a qual o direito não socorre a quem dorme.

 

Assim, cumprirá ao detentor do direito não descurar da guarda de seus interesses, de forma célere, sob pena de, na demora, não haver como reclamar, o que não deixa de atender a certos escopos decorrentes de uma função social da propriedade (privilegiada pela EC nº 26, com a atual redação do artigo 6º, caput, CR), já que, se existe uma certa demora na busca do direito, como regra geral, tem-se que esse não está gerando penúria para o seu titular (ou seja o titular que não percebe a exploração, ao menos em tese, parece não estar precisando dos frutos dessa exploração, presumindo-se um certo desinteresse pela questão).

 

Com isso, o ordenamento como um todo, não deixa de ter maior agilidade, tornando bizantinas discussões referentes a regressos ou indenizações em períodos anteriores, ante tudo quanto ponderado acima, eis que, ao menos, uma parte dos focos da pretensão das partes, acaba por restar delimitado, somente se admitindo discussões a partir da reclamação do interessado.

 

A questão, no entanto, parece criar um precedente nesse sentido, qual seja, uma presunção de desinteresse, como forma de direcionar discussões judiciais, isso desestimula demandas a respeito do tema, bastando que se componha a questão a partir da notificação da oposição, tornando o processo um instrumento mais célere de atuação da vontade do direito, o que, como ponderado acima, não deixa de contribuir para o ordenamento seja mais seguro pela sua rapidez, atraindo investimentos.

 

Mas a questão não parece exaurir outros aspectos possíveis de discussão, como, por exemplo, a situação de pessoas que tenham sido vítimas de ardis (dolo, como preconizado acima), simulações ou lesões, por exemplo, em que não haveria um desinteresse presumido, mas causas de nulidades de atos jurídicos (até mesmo, por exemplo, no que se refere a direito de incapazes, cuja indisponibilidade faria cessar essa presunção de desinteresse, não se podendo imputar a quem não tenha capacidade de exercício, a responsabilidade pela demora), de modo que resta lançada a celeuma a esse respeito, servindo o presente artigo de mera conjectura inicial para que se parta para entendimentos mais elaborados.

 

A nova orientação, portanto, parece ter alterado as bases do instituto do enriquecimento sem causa, mas parece que o fez sob um prisma de proporcionalidade ou razoabilidade (a conhecida noção de “lógica do razoável” ou logus del razonable, a que alude Celso Lafer, a partir da obra de Hannah Arendt)[12], visando atingir a outros ideais pragmáticos, tal como destacado acima, dentro dessa nova visão do ordenamento jurídico, sob um prisma de paradigma da complexidade do direito.

 

 

VI.) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CATEB, Salomão de Araújo. Direito das Sucessões. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003.

 

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras. 1.991.

 

MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva., 1.988

 

SILVA, Júlio César Ballerini. A Complexa questão dos direitos das minorias e a efetividade de sua tutela no plano individual e coletivo, Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, v. 55, Ribeirão Preto: Nacional de Direito. 2.005.

 

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003.

 

______. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria geral dos Contratos. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003.

 


[1] E, em mais de uma oportunidade, já se teve a oportunidade de ponderar no sentido de que o mundo moderno oferece inúmeras dificuldades aos operadores do direito, mormente diante de um certo paradigma da complexidade, decorrente de uma interdisciplinaridade cada mais freqüente, nas relações intersubjetivas tal como preconizado por MORIN, Edgar, apud, SILVA, Júlio César Ballerini. A Complexa questão dos direitos das minorias e a efetividade de sua tutela no plano individual e coletivo, Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, v. 55, Ribeirão Preto: 2.005, p. 62.

 

[2] Cf. CATEB, Salomão de Araújo. Direito das Sucessões. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003. p.38 e VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003. p.29.

[3] VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit. p.28.

[4] Não são desconhecidas as ilações lançadas pelo chamado Documento Técnico nº 319 do Banco Mundial, relacionados à efetividade do Poder Judiciário na América Latina e no Caribe, a partir do Relatório formulado por Maria Dakollias, envolvendo as dificuldades de livre circulação de riquezas diante da morosidade de obtenção da concretude do ordenamento jurídico (o que, e isso parece ser de peculiar obviedade franciscana, acaba por gerar maiores dificuldades de obtenção de crédito internacional, diante da perspectiva de dificuldades no recebimento e cumprimento de obrigações).

[5] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria geral dos Contratos. 3ª Ed. São Paulo: Atlas. 2003. p.210.

[6] Ibid. Ibidem. p.212.

[7] RESP Nº 570.723 - RJ (2003/0153830-0). Rel. Min. Nancy Andrighi. 

 

[8] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2006.001.24586 - APELACAO CIVEL DES. SIRO DARLAN DE OLIVEIRA - Julgamento: 25/07/2006 - DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL

[9] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2004.001.06975 - APELACAO CIVEL DES. BERNARDINO M. LEITUGA - Julgamento: 08/06/2004 - DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL

[10] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2003.001.04897 - APELACAO CIVEL DES. JOSE C. FIGUEIREDO - Julgamento: 25/06/2003 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL

[11] MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano, São Paulo: Saraiva, 1.988, p. 16.

[12] LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos, São Paulo: Companhia das Letras, 1.991.