JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA
MAGISTRADO PROFESSOR DE PROCESSO CIVIL
MESTRE EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL
No Estado Liberal com suas premissas do laissez faire laissez passet, desenvolveu-se uma grande preocupação com a conversão das obrigações contratuais não cumpridas em perdas e danos, eis que se privilegiava o entendimento de acordo com o qual, não havendo cumprimento espontâneo de uma obrigação, abria-se a via da execução obrigacional pela técnica da sub-rogação (Estado substituiu-se na pessoa do devedor que deveria ter pago, separando bens do patrimônio do devedor, vendendo-os por expropriação e pagando a dívida).
Não obstante o sistema fosse visto como uma evolução (os romanos, por exemplo, antes da Lex Poethelia Papiria admitiam a venda do devedor como escravo e até mesmo que fosse retalhado em pedaços além do Rio Tibere – executio trans Tibere), com a limitação da responsabilidade obrigacional (haftung) ao patrimônio do devedor, não se pode negar que o sistema não era totalmente adequado, deixando muito a desejar, sobretudo em relação às obrigações de fazer e não fazer.
Isso porque, até o advento do CDC, quando o objeto da obrigação fosse um fazer ou não fazer, o que se observava era a situação em que o inadimplemento dessas obrigações convertia-se em perdas e danos e se executava a indenização, mas o objeto específico da obrigação (fazer ou não fazer – prestações de comportamento – não era atingido).
Diante disso, desenvolveu-se um sistema de tutelas específicas dessas obrigações (fazer e não fazer) a partir do artigo 84 CDC, espalhando-se mais tarde para o sistema geral do Código de Processo Civil de 1.973.
Assim, no regime anterior, havia dois modos básicos de se promover uma execução (seja extrajudicial, seja judicial – eis que, embora não sejam regra, ainda existem execuções judiciais autônomas no direito brasileiro, a par do cumprimento de sentenças, como por exemplo, no caso da sentença penal condenatória transitada em julgado ou da execução da sentença estrangeira homologada), num primeiro momento se empregando a técnica de sub-rogação, técnica típica das obrigações de pagar quantia determinada e as técnicas de execução psicológica (Daniel Amorin Assumpção Neves), em que se empregam táticas visando influenciar o devedor (executado) a cumprir o conteúdo da obrigação – normalmente uma obrigação de fazer ou não fazer, não obstante a possibilidade disso também ocorrer com obrigações de dar (a assim chamada tutela específica – pela coerção negativa – geralmente multas de periodicidade variável), ou mesmo uma obrigação de pagar (sanção premial – pague em três dias e tenha a verba sucumbencial reduzida pela metade).
O novo CPC no artigo 139, inciso IV inova ao criar uma cláusula geral (sub-espécie do gênero conceito vago – técnica legislativa de se empregar modelos abertos a serem preenchidos no caso concreto pelo Julgador – em visão bem diferente da teoria clássica em que o legislador pretendia regrar todo o sistema e surgiam pseudo-lacunas a serem preenchidas nos termos do artigo 4º LINDB) no sentido de permitir ao Juiz adotar medidas sub-rogatórias (técnicas de sub-rogação), mandamentais (passíveis de gerar crime de desobediência), indutivas e coercitivas (nesses dois casos, execução psicológica), inclusive nas obrigações de pagar quantias determinadas.
Vai daí que o meio jurídico tem sido surpreendido por uma miríade de notícias em que tais medidas vão sendo determinadas seja para recolher passaporte de quem não paga suas dívidas, mas posta no facebook que vai viajar para a Disney com a família, suspender a CNH de quem alega não ter carro, mas é visto conduzindo veículos de luxo ou, até mesmo, para suspender cartões de crédito. No âmbito da Justiça do Trabalho há notícias de decisões impedindo contratação de novos empregados enquanto não quitadas dívidas pendentes de empregados demitidos.
Tais medidas se revelam como tecnicamente possíveis, mas devem ser devidamente fundamentadas (artigo 93, IX CF e 489 e consectários CPC), apontando-se de forma clara as razões de convencimento atreladas aos fatos do processo, tanto assim que algumas vem sendo cassadas pelos Tribunais quando por exemplo, se impede o direito constitucional de ir e vir, se suspende CNH de taxista ou motorista de Uber ou quando a empresa irá paralisar suas atividades porque necessita de novos empregados.
Não obstante a intenção do legislador tenha sido salutar, visando combater a crise do processo de execução (há grande número de execuções em aberto em relação às quais não se consegue receber integralmente o crédito ou compelir o devedor ao pagamento), não se pode perder de vistas que o advento da norma contida no artigo 8º CPC exige proporcionalidade e razoabilidade em qualquer medida, afinal de contas.
Por outro lado, de se sopesar, dentro das técnicas de ponderação (Norberto Bobbio) que devedores, como os demais operadores do processo, devem atuar em colaboração/cooperação com todos para o fim satisfativo do processo, dentro de um tempo razoável (artigos 4º e 6º novo CPC), medida já prestigiada pelo Pacto de San Jose e que se constitucionalizou com a Emenda Constitucional nº 45/04.
Mais ainda, por mais que exista acúmulo de serviços e número insuficiente de Magistrados e serventuários, não podemos nos esquecer de que vivemos em uma democracia participativa, de sorte tal que, nessas condições, como pontua Michelle Taruffo, a motivação ganha contornos endo-processuais (convencimento das partes acerca da Justiça da decisão), mas igualmente exo-processuais (convencimento da sociedade no sentido de que os processos se resolvam de modo adequado – o que ganha contornos ainda mais candentes num ambiente de franco ativismo judicial como o vivenciado hodiernamente – ativismo este de constitucionalidade duvidosa como apontado por Nelson Nery Jr em recente entrevista ao site Jota).
Em tal ambiente, nunca se pode esquecer de que se vive em uma democracia, ou seja, os valores democráticos do fair hearing, ou processo justo, não podem ser negligenciados, o contraditório deve ser efetivo e não um mero simulacro (além de se permitir prévia manifestação, deve-se analisar detidamente os argumentos da parte – de nada adianta garantir que se fale, se não se analisar o que foi dito).
O artigo 489 e seus consectários do novo CPC deve ser fielmente cumprido. As partes devem compreender porque seus argumentos não foram aceitos – argumentos de fato devem ser efetivamente sopesados – do contrário haveria ditadura judiciária e qualquer hipótese de ditadura, por mais bem intencionada que seja, deve ser combatida.
Devedores contumazes devem, sim, ser compelidos ao pagamento, mas tudo dentro das regras legais, com análise adequada de seus argumentos, de modo equidistante (Ada Pellegrini Grinover aponta no sentido de que o que justificaria a existência de um Poder Judiciário dentro de um Estado Democrático seria, justamente, sua imparcialidade – e, de fato, do contrário, poderíamos muito bem ter um regime de bipartição de poderes como se dá na França em que os órgãos que entendemos como Judiciário pertinem ao Executivo).
Do contrário passaríamos a tolerar medidas mais radicais como as encontradas no direito anglo-saxão, em que se admitem colocação de placas em casas de devedores e outros meios vexatórios, que exporiam, não só o devedor, mas seus familiares a constrangimentos – medidas não razoáveis num Estado Democrático de Direito (em regra apenas o patrimônio do devedor deve responder por suas dívidas, não obstante as vezes terceiros venham a ser chamados à responsabilidade, como sócios ou mesmo patrimônio de cônjuge a depender do regime de bens e do proveito para a entidade familiar).
Em síntese, como pontuo em aula, em direito não há resposta correta que não seja DEPENDE !!! Continuo a afirmar, o mundo é um lugar realmente perigoso para se viver.